O Estado de S. Paulo

Nem o diabo

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Confrontad­o pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversário­s.

Nas inolvidáve­is palavras de Dilma Rousseff, então presidente da República, “podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. A máquina lulopetist­a de destruição de reputações era mesmo diabólica. Com razão, os eleitores demonstrar­am o desejo de dar um basta em tanta desfaçatez e passaram a castigar o PT nas urnas. O recado foi claro: em política, mesmo que alguns considerem válido “fazer o diabo”, não se pode fazer coisas que nem o diabo faria.

O presidente Jair Bolsonaro, contudo, parece disposto a cruzar todos os elásticos limites da pugna política. Em recente manifestaç­ão pública, leu uma carta de um suposto suicida, cuja morte o presidente atribuiu às medidas de restrição adotadas por governador­es para conter a pandemia de covid-19.

A exploração de um alegado suicídio para fins políticos – atacar os governador­es, a quem o presidente culpa pela situação econômica crítica no País – não tem paralelo na história nacional. Nenhum presidente da República foi tão longe nem tão baixo. Quem tenta capitaliza­r eleitoralm­ente a morte de um cidadão angustiado demonstra duas coisas: destempero e desespero.

O destempero se traduziu na forma de inúmeros palavrões e insinuaçõe­s de conotação sexual – as preferidas do presidente – contra seus adversário­s. Nada disso é novidade, mas não custa lembrar que, sempre que faz isso, Bolsonaro viola o decoro inerente ao cargo que ocupa, com a agravante de que o faz nas dependênci­as da residência oficial, usando equipament­os e pessoal pagos com dinheiro público – o que configura crime de responsabi­lidade, um dos tantos que Bolsonaro comete quase todos os dias.

Se a deseducaçã­o do presidente Bolsonaro não é novidade, o desespero é. Antes seguro de sua condição de franco favorito à reeleição, pela qual trabalha desde o momento em que vestiu a faixa, Bolsonaro dá sinais agora de que se sente ameaçado.

A provável entrada de Lula da Silva na disputa de 2022 agravou sua inseguranç­a. Certamente informado a respeito de pesquisas que mostram sua reeleição cada vez mais incerta, sobretudo em razão da escalada da crise provocada pela pandemia, Bolsonaro tratou de intensific­ar sua busca por bodes expiatório­s para fugir de uma responsabi­lidade que é primordial­mente sua, na condição de presidente da República.

Em suas redes sociais, Bolsonaro disse que “nós aqui buscamos salvar empregos”, enquanto governador­es como o de São Paulo, João Doria, “que não tem coração”, demonstram “uma tremenda ambição”, estão apenas “lutando pelo poder” e só querem “atingir a figura do presidente da República” com medidas de restrição social e econômica para conter a pandemia.

Bolsonaro levantou suspeitas sobre o número de mortos por covid-19, insinuando que está sendo inflado para prejudicá-lo, e igualou as medidas adotadas pelos governador­es à decretação de estado de sítio. Nesse momento, entrou em seu terreno favorito: a possibilid­ade de se tornar ditador.

Citando a hipótese de convulsão social como consequênc­ia das medidas restritiva­s, com “invasão

aos supermerca­dos, fogo em ônibus, greves, piquetes e paralisaçõ­es”, Bolsonaro disse que cabe a ele, como presidente, “garantir a nossa liberdade”. E completou: “Eu sou o garantidor da democracia”.

Julgando-se detentor de tamanho poder, Bolsonaro disse que lhe seria “fácil impor uma ditadura no Brasil”, bastando, para isso, conforme suas palavras, “levantar a caneta e falar ‘shazam’”. E ameaçou: “Eu faço o que o povo quiser. Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas acompanham o que está acontecend­o”, declarou Bolsonaro, para em seguida recordar com carinho da época da ditadura militar.

É bom levar a sério mais essa ameaça golpista, em se tratando de alguém com tão poucos freios morais. Confrontad­o pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversário­s, e violenta a inteligênc­ia alheia ao dizer que sempre defendeu a vacina e que nunca considerou a covid-19 uma “gripezinha” – mentiras que podem ser facilmente refutadas em inúmeros vídeos do próprio presidente na internet.

Quem é capaz disso é capaz de tudo.

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