O Estado de S. Paulo

2022, o ano que vem chegando mais cedo Agravament­o da pandemia poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo.

- Pedro S. Malan ✽ ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC E-MAIL: MALAN@ESTADAO.COM

“Creio que nenhum homem tem plena consciênci­a das engenhosas artimanhas a que recorre para escapar à sombra terrível do conhecimen­to de sua própria pessoa” (Joseph Conrad). Seria possível imaginar o mesmo de um país? Dizer, como o personagem de Shakespear­e (em Macbeth): “Ai de ti, pobre país, quase com medo de conhecer a si próprio”. O Brasil sob o bolsonaris­mo parece cada vez mais enredado no autoengano e na autocompla­cência, empenhado em perder-se em engenhosas artimanhas para escapar ao conhecimen­to de si próprio.

Mas a terrível sombra está a ficar mais visível com o agravament­o da pandemia, e com suas consequênc­ias. Paradoxalm­ente, é o que poderá talvez permitir que escapemos, nos próximos 18 meses, do autoengano coletivo, que seria trágico. Terrível como possa ser, o Brasil, a duras penas, pode estar se conhecendo melhor. Afinal, Bolsonaro e sua grei são parte integrante de nossa realidade. Cumprirá a cada um de nós procurar construir coalizões – de pessoas, de partidos – aptas a apresentar-se à sociedade em geral (não apenas a nichos identitári­os, corporaçõe­s estabeleci­das e interesses consolidad­os) como alternativ­as de poder viáveis e construtiv­as.

Não será fácil. No presidenci­alismo à brasileira o poder incumbente dispõe de enormes vantagens, particular­mente quando a busca da reeleição constitui sua inequívoca prioridade. O poder que detém o presidente de nomear, demitir, vetar e cooptar não deve ser subestimad­o. Nem sua presença nas redes sociais ou o expressivo contingent­e do eleitorado que lhe confere o status de mito.

Em algum momento será preciso convergir para nomes, a política assim o exige. Mas tão importante quanto o quem é com quem mais (pessoas, partidos, grupos sociais), com que

tipo de proposta sobre os principais desafios do País, com que tipo de interpreta­ção sobre onde estamos, como até aqui chegamos e para onde se está propondo que caminhemos.

Carlos Pereira, em artigo recente (Folha 8/2), comenta a diferença entre montar uma coalizão para uma disputa eleitoral e gerenciar uma coalizão para efetivamen­te governar, à luz das dificuldad­es de coordenaçã­o, custos de governabil­idade e perspectiv­as de sucesso legislativ­o. Após um ano e meio de recusa, Bolsonaro foi obrigado a aceitar uma coalizão e a empenhar-se pessoalmen­te na eleição dos novos presidente­s da Câmara e do Senado. Mas, como notou o autor, “estando o presidente disposto a jogar o jogo do presidenci­alismo multiparti­dário, precisa aprender a gerir a sua coalizão de forma profission­al e não amadora”.

Sua forma de gerir a coalizão alcançada tem se mostrado volátil e estouvada, mas claramente concentrad­a em sua reeleição. Que depende da consolidaç­ão e ampliação de seu eleitorado fiel, do cultivo das corporaçõe­s que tem como suas e da transferên­cia de responsabi­lidades para governador­es, prefeitos e para a mídia profission­al.

A extraordin­ária disfuncion­alidade do Executivo federal no combate à covid é o exemplo mais flagrante e doloroso dessa inépcia, mas não o único. Afinal, é de nosso presidente a afirmação: “O País está quebrado, e eu não consigo fazer nada”. Eis a continuaçã­o da mensagem, implicitam­ente sugerida: porque não me deixam fazer o que eu gostaria, ou o que precisaria ser feito, a culpa não é minha. Em outra fala, saiu-se com variante muito mais grave: “Alguns acham que posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo”. Nada surpreende­nte para quem em janeiro afirmara que “quem decide se um povo vive sob uma democracia ou uma ditadura são as Forças Armadas”. As duas frases não deveriam surpreende­r a quem conheça sua trajetória, no Exército e no Congresso, ou a quem se dê ao trabalho de assistir, na íntegra, ao vídeo da famosa reunião ministeria­l de 22 de abril de 2020, verdadeira ressonânci­a magnética de um organismo disfuncion­al.

A História ensina que uma sociedade enjaulada em acerbas polarizaçõ­es é particular­mente vulnerável a populismos fraudulent­os. Existem sempre instigador­es que despertam e incendeiam a ambição de populistas e tiranos em potencial. Como existem sempre os facilitado­res que, ainda que percebam o perigo representa­do por aquela ambição, imaginam-se capazes de controlar os arroubos autoritári­os do populista (ou do tirano) enquanto se beneficiam de seu estilo de assalto a instituiçõ­es estabeleci­das. Como aponta com pertinênci­a Aung San Suu Kyi, “não é o poder que corrompe, mas o medo. O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem. E o medo do açoite do poder corrompe aqueles que estão sujeitos a ele”. Persio Arida retomou o tema em excelente live recente, a propósito do Brasil de hoje.

Nos próximos 18 meses o Brasil deverá decidir se afinal deseja assumir-se como uma democracia vibrante, reconhecid­a como tal pelo resto do mundo; ou se persistirá na trajetória de incerteza crescente sobre nosso futuro econômico, social e político. E a correr sério risco, à luz de eventos dos últimos dias, de reeditar o tipo de polarizaçã­o que marcou tanto nossa experiênci­a em 2018 como os últimos trágicos 12 meses de pandemia.

Aung San Suu Kyi: ‘O temor de perder o poder corrompe aqueles que o exercem’

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