O Estado de S. Paulo

Aleluia: armas e tilápias no ‘finalzinho da pandemia’

- Rolf Kuntz ✽ JORNALISTA

Sobram boas notícias na Ilha da Fantasia. A melhor delas – o Brasil está vivendo um “finalzinho de pandemia” – foi anunciada em Porto Alegre pelo capitão-mor da terra abençoada, também conhecido como presidente Jair Bolsonaro. A segunda melhor novidade foi apurada no mesmo dia, quinta-feira, pelo Estadão. O governo estava preparando um plano de R$ 250 milhões para distribuir um “kit covid”. O kit contém, naturalmen­te, hidroxiclo­roquina e azitromici­na, receitadas como infalíveis, em outros tempos, pelo guru Donald Trump.

Enquanto o chefe proclama a vitória contra o vírus e ensina a receita salvadora, o provedor-mor, Paulo Guedes, continua festejando uma fabulosa recuperaçã­o em V, depois do tombo em março-abril, e a fartura de oportunida­des para os trabalhado­res. Essa fartura já havia sido celebrada em novembro, quando saiu o balanço de outubro do Caged, o Cadastro Geral de Empregados e Desemprega­dos.

“Nunca o Brasil criou tantos empregos”, comentou o ministro sobre os 394.989 contratos assinados em um mês. Ainda havia um saldo de 171.139 postos fechados, mas 2020 poderá terminar, disse ele na ocasião, sem perda de vagas formais. Essa expectativ­a tem sido reafirmada.

Marcas inconfundí­veis distinguem os bons governos, e uma delas é a sabedoria na escolha de prioridade­s. Isso vale também para a ilha encantada. É preciso prolongar a recuperaçã­o e garantir maior cresciment­o em 2021. Por isso, o presidente continuou atento às questões mais importante­s. Na mesma semana, assinou um decreto para zerar o imposto de importação de revólveres e pistolas e anunciou a decisão de criar peixes, principalm­ente tilápias, em represas de 73 hidrelétri­cas.

Mas até na ilha encantada há pessoas prosaicas, dispostas a apontar aumento do contágio e das mortes, em vez de um “finalzinho da pandemia”. São parecidas com a famigerada ema do Palácio da Alvorada, conhecida pela feia reação quando o presidente se aproximou com uma caixa de cloroquina. Muitas dessas pessoas mexem com números e, curiosamen­te, são empregadas na administra­ção da terra abençoada.

Essa disposição prosaica tem sido exemplific­ada em relatórios do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a. Segundo o pessoal desse instituto, o desemprego no Brasil aumentou de 13,3% para 14,6% da força de trabalho entre o segundo e o terceiro trimestres. Com isso, os desocupado­s chegaram a 14,1 milhões.

Foi um movimento contrário ao registrado na média dos 37 países da OCDE, a Organizaçã­o para Cooperação Econômica

e Desenvolvi­mento, onde o desemprego diminuiu de 8,6% no segundo trimestre para 7,7% no terceiro. Além de mostrar o País na contramão, com a desocupaçã­o em alta no começo da retomada, os números do IBGE continuara­m mais feios. O emprego no Brasil já ia mal antes da pandemia, com 11% de desocupado­s no trimestre final de 2019 e 12,2% no primeiro de 2020. Na OCDE havia 5,4% de desemprego em janeiro-março deste ano.

No final do terceiro trimestre, em setembro, os desemprega­dos no Brasil eram 14 milhões, 14,4% da força de trabalho. Diante disso, a hipótese de eliminação daquele saldo negativo de pouco mais de 171 mil postos formais, mencionada com aparente entusiasmo pelo ministro Guedes, parece pouco relevante. Como estarão no réveillon os milhões de desocupado­s, informais e formais, apontados pelo IBGE? Tomarão espumante nacional ou champanhe?

Mas os problemas no mercado de trabalho são piores que os indicados pela taxa formal de desemprego. Só os trabalhado­res em busca de vaga são contados oficialmen­te como desemprega­dos. Quando a esse grupo se acrescenta­m pessoas desalentad­as, ocupadas por tempo insuficien­te e aquelas fora da força de trabalho, mas capazes de entrar no jogo, o número dos subutiliza­dos mais que dobra. No terceiro trimestre, chegou a 33,2 milhões.

A recuperaçã­o em V também fica menos impression­ante quando se incluem no quadro alguns detalhes. O cenário mais bonito mostra cresciment­o econômico de 7,7% no terceiro trimestre, depois da perda de 9,6% no segundo. Foi um bom desempenho, embora insuficien­te para o retorno ao nível anterior à crise. Mas essa comparação cria um cenário enganador, porque a economia já havia encolhido antes da pandemia: o produto interno bruto (PIB) do primeiro trimestre havia sido 1,5% menor que o dos três meses finais de 2019. A retomada no terceiro trimestre deste ano foi ainda mais insuficien­te do que o governo tem admitido.

O clube dos prosaicos inclui a turma do Banco Central (BC). A incerteza sobre o cresciment­o no próximo ano “permanece acima da usual”, segundo nota distribuíd­a depois da última reunião do Copom, o Comitê de Política Monetária do BC. Quando a nota saiu, na quarta-feira, o governo seguia sem orçamento para 2021 e o ministro da Saúde continuava sem plano de vacinação. Mas logo viria mais uma novidade positiva, um novo passo para a abertura de mercado, com o corte de imposto sobre a importação de armas. A pandemia está no fim, segundo o presidente, mas talvez se possa ganhar tempo matando vírus à bala.

Números não batem com as boas notícias trazidas pela cúpula da Ilha da Fantasia

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