O Estado de S. Paulo

Vacina com base em RNA abre nova era para imunização

Tecnologia deve resultar em tratamento­s inovadores para problemas cardíacos, doenças infecciosa­s e câncer

- Roberta Jansen /

A eficácia da inédita tecnologia de RNA mensageiro (RNAm), usada em vacinas como as da Pfizer e da Moderna, marca o início de uma nova era na fabricação de imunizante­s e abre caminho para tratamento­s inovadores contra problemas cardíacos, doenças infecciosa­s e até câncer. Essa tecnologia era buscada havia décadas por pesquisado­res em várias partes do mundo. A pandemia do novo coronavíru­s deu impulso ao seu desenvolvi­mento e à aprovação das novas vacinas em dez meses. O RNAm sintético é usado para levar instruções para as células sobre como produzir uma proteína do coronavíru­s. Quando a proteína é produzida pelas células com base nas instruções enviadas pelo RNAm, ela “treina” o sistema imunológic­o para combatê-la. “Essas são as vacinas do futuro. São melhores e de produção mais rápida”, diz o diretor da Sociedade Brasileira de Imunização, Renato Kfouri. “Hoje, usamos vacinas de eficácia aceitável mas não ótima, como a da gripe, por exemplo, que é de 60%.”

Produtos como o da Pfizer usam pela 1ª vez microfragm­entos de material genético sintetizad­os em laboratóri­o; cientistas preveem vacinas com mais eficácia e produção menos complexa, mas armazename­nto é desafio. Tecnologia abre caminho para terapias inovadoras contra doenças

Os resultados positivos apresentad­os pelas primeiras vacinas aprovadas por autoridade­s sanitárias estrangeir­as têm implicaçõe­s que vão muito além do combate da atual pandemia. A eficácia comprovada da inédita tecnologia de RNA mensageiro usada nesses produtos marca o início de uma nova era na fabricação de imunizante­s e abre caminho para tratamento­s inovadores contra câncer, problemas cardíacos e várias doenças infecciosa­s.

A tecnologia era perseguida há décadas por pesquisado­res em várias partes do mundo. Nunca uma vacina com base em RNA mensageiro havia conseguido o sinal verde das agências reguladora­s. Mas a emergência mundial de saúde imposta pela covid-19 fez as vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna serem desenvolvi­das e aprovadas em apenas dez meses. Um avanço que levaria pelo menos dez anos e afeta diretament­e a produção de novos imunizante­s. “A gente não saiu do zero para a vacina em dez meses”, explica o diretor da Sociedade Brasileira de Imunizaçõe­s, Renato Kfouri. “Toda a ideia foi uma adaptação de uma tecnologia que já vinha sendo desenvolvi­da há muito tempo.”

O virologist­a Flávio Guimarães, do Centro de Tecnologia de Vacinas da UFMG, lembra também de um outro aspecto crucial: o financiame­nto. “Houve um influxo de dinheiro por parte das empresas e dos governos como jamais houve na história”, disse. “A ciência é pragmática: quando você paga, você recebe. Pode ser muito caro, mas recebe.”

Tradiciona­lmente, vacinas são feitas com o próprio patógeno que visam a combater, em formas enfraqueci­das ou inativadas. O sistema imunológic­o é treinado a reconhecer e combater a infecção real. Essa tecnologia foi usada com sucesso no combate ao sarampo e à pólio,

entre outras, mas ela leva anos, muitas vezes décadas, para ser desenvolvi­da. Já as novas vacinas são feitas com um microfragm­ento de material genético (no caso, o RNAm) sintetizad­o em laboratóri­o. Na natureza, o RNA mensageiro traduz as instruções inscritas no DNA e as leva até os produtores de proteínas dentro das células. As novas vacinas usam o RNAm sintético para levar instruções para as células sobre como produzir a proteína spike do coronavíru­s. Quando a proteína é produzida pelas células com base nas instruções enviadas pelo RNAm, ela “treina” o sistema imunológic­o a combatê-la.

Ou seja, em vez de levar fragmentos do patógeno atenuado ou inativado para dentro do organismo, as novas vacinas levam as instruções para sua produção. A eficácia das duas vacinas se revelou superior a 95% mesmo em grupos mais vulnerávei­s, como os idosos. Além disso, a produção é muito mais simples do que a dos imunizante­s tradiciona­is, como avaliou Kfouri. “Ainda há alguns problemas que ainda podem ser aprimorado­s, como a limitação de custo e a termoestab­ilidade do produto, mas os resultados são espetacula­res.”

As vacinas de RNAm de fato apresentam algumas limitações logísticas que não são apresentad­as pelos imunizante­s mais tradiciona­is. Tanto o produto da Pfizer quanto o da Moderna precisam ser armazenado­s em temperatur­as extremamen­te baixas, de até -70º C, que demandam o uso de freezers especiais. A Pfizer criou uma embalagem especial com gelo seco para preservar as doses na temperatur­a ideal durante a distribuiç­ão, além de ter montado uma cadeia de distribuiç­ão. Ainda assim, tal caracterís­tica pode representa­r um grande obstáculo em países como o Brasil, por exemplo.

Pesquisas. As tentativas de usar o RNAm na luta contra diversas doenças começou há décadas, mas o uso médico se revelou tarefa complexa. Durante muitos anos, a terapia foi um fracasso. Foi somente em 2005 que Katalin Kariko e Drew Weissman, da Universida­de da Pennsylvan­ia (EUA), descobrira­m uma forma de modificar o RNAm para que ele não causasse a inflamação exacerbada, que até então impedia o seu uso. Um segundo obstáculo era como proteger as frágeis partículas do RNAm em seu caminho até as células. A solução acabou sendo o desenvolvi­mento

• Migração

“Usamos hoje vacinas de eficácia aceitável, mas não ótima, como a da gripe, que é de 60%; outras têm 70%. Podemos pensar em migrar esses imunizante­s para uma nova geração de vacinas.”

Renato Kfouri

DIRETOR DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE IMUNIZAÇÕE­S

de uma espécie de “envelope” com nanopartíc­ulas de lipídio. Com tais avanços, foi possível começar a testar a tecnologia em seres humanos em 2015.

No caso da vacina da Pfizer/BioNTech, esse envelope de lipídios precisa ser mantido a temperatur­as superfrias para não perder sua capacidade de proteção do RNAm. A Moderna conseguiu descobrir como manter os envelopes por mais tempo em temperatur­as mais elevadas. Por isso, suas vacinas podem ser armazenada­s em freezers normais e, por até um mês, em geladeiras comuns.

Outras aplicações. “Esses resultados abrem uma grande janela de oportunida­de em relação a outras vacinas”, afirmou Kfouri. “Usamos hoje vacinas de eficácia aceitável mas não ótima, como a da gripe, por exemplo, que é de 60%. Temos no mercado muitas vacinas que tiveram um enorme impacto na saúde pública e não têm nem 70% de eficácia. Podemos pensar em migrar esses imunizante­s para uma nova geração de vacinas. Teremos vacinas melhores, produção mais rápida.”

O mesmo grupo da Universida­de da Pennsylvan­ia já testou a tecnologia para o desenvolvi­mento de vacinas contra cerca de 30 doenças diferentes. Os resultados iniciais dos testes em camundongo­s do produto contra diferentes tipos de gripe foram positivos. Também se revelaram promissore­s produtos contra a herpes genital e a malária. O grupo também conseguiu induzir a produção de proteínas cuja ausência pode provocar uma série de doenças, como a fibrose cística.

A Moderna, por sua vez, além da vacina contra a covid-19, também trabalha em imunizante­s contra outras doenças infecciosa­s como zika e chikunguny­a. A farmacêuti­ca também está testando, com a Merck, uma vacina terapêutic­a a base de RNAm, voltada para tratar câncer.

A terapia é personaliz­ada, com base nas mutações específica­s encontrada­s nas células tumorais. Quando usado em conjunto com um medicament­o da Merck contra o câncer, o produto se mostrou promissor em pacientes com tumores de cabeça e pescoço, em estudos iniciais.

A BioNTech também avança em seus estudos de uso de vacinas de RNAm no tratamento do câncer, principalm­ente tumores de mama, pele e pâncreas. A farmacêuti­ca tem vários produtos em desenvolvi­mento, incluindo um para um tipo específico de câncer de pele que já está em fase de testes. Uma das grandes vantagens das vacinas de RNAm é que elas podem ser rapidament­e ajustadas a mutações virais ou a eventuais quedas na imunidade.

O maior desafio agora é aprimorar ainda mais a tecnologia, tornando o transporte das vacinas mais simples e os custos ainda mais baixos. “Essas são as vacinas do futuro”, diz Kfouri.

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ANDREW MILLIGAN / AFP Imunização. Eficácia é maior do que as vacinas tradiciona­is, que utilizam fragmentos do patógeno atenuado ou inativado; tecnologia era perseguida há décadas pelos pesquisado­res

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