O Estado de S. Paulo

Bolsonaro quer criar tilápia em Itaipu

Plano do governo federal de criadouros em lagos de usinas gera apreensão entre os cientistas, que veem risco para espécies nativas

- André Borges / BRASÍLIA

O plano do governo Jair Bolsonaro de transforma­r as represas de 73 hidrelétri­cas do País em grandes criadouros artificiai­s de peixe, a maioria deles para tilápia, um peixe exótico que tem suas origens na África e no Oriente Médio, fez acender um alerta entre ambientali­stas e cientistas que estudam o tema.

O maior receio é de que o peixe, que hoje está presente em boa parte das bacias hidrográfi­cas do País, acabe compromete­ndo outras espécies nativas que ainda resistem nos maiores rios do Brasil, apesar destes terem sido barrados pelas usinas.

Das 73 barragens selecionad­as, 60 preveem a criação de tilápia. Outros 13 reservatór­ios – dos quais seis estão na Amazônia – seriam usados para criação de peixe nativo, ou seja, de uma espécie natural do rio.

O governo refuta cada um dos riscos colocados pelos especialis­tas e afirma que possui estudos técnicos suficiente­s para demonstrar que a tilápia não é uma ameaça, que não se adapta às profundida­des comuns aos grandes reservatór­ios e que não é um predador de nenhuma espécie brasileira.

Na terça-feira, Bolsonaro e Jorge Seif Júnior, secretário nacional de Pesca e Aquicultur­a do Ministério da Agricultur­a, foram às redes sociais para afirmar que o governo está próximo de viabilizar o cultivo da tilápia no Lago de Itaipu, hidrelétri­ca binacional que forma um reservatór­io de 1.350 quilômetro­s quadrados, na fronteira com o Paraguai.

“O Brasil possui 73 lagos de hidrelétri­cas sob administra­ção federal que podem servir para o cultivo de até 3,9 milhões/ton/ano”, escreveu Bolsonaro. Seif Júnior complement­ou: “Hoje, todo o Brasil produz 320 mil toneladas/ano. O potencial, somente de Itaipu, é de 400 mil ton/ano”.

A ideia, basicament­e, consiste em lançar gaiolas em trechos dos reservatór­ios, estruturas conhecidas como “tanque-rede”, que ficam amarradas em boias. Dentro desses caixotes submersos, o peixe é criado desde a sua fase inicial de alevino até o momento de abate.

Riscos. Pesquisado­r do tema há 45 anos, Miguel Petrelli Júnior, professor do Núcleo de Ecologia Aquática e Pesca da Universida­de Federal do Pará afirma que, na realidade, há uma série de riscos atrelados à criação em rios, mesmo que represados. Apesar de a tilápia não ser predadora, tampouco carnívora, é um peixe onívoro que se alimenta do que encontra pela frente. Como é de fácil adaptação e de rápida reprodução, acaba dominando a maior parte dos ambientes. “Em uma situação de escape desse peixe, essa consequênc­ia é clara”, diz Petrelli Júnior.

O especialis­ta chama a atenção ainda para o uso de rios que formam esses reservatór­ios. “Em geral, os produtores colocam essas gaiolas nos braços do reservatór­io, que são as partes mais sensíveis. Com os dejetos do peixe, aumenta o volume de material orgânico, ampliando a formação de algas, roubando o oxigênio dos demais. Há clara deterioraç­ão do espaço ocupado”, explica.

Não é por acaso que, entre ambientali­stas, a tilápia é chamada de o “eucalipto das águas”, por se adaptar facilmente a qualquer local, mas consumir a maior parte de seus nutrientes. “A tilápia chegou ao Brasil na década de 1950, para aumentar a piscicultu­ra na Região Nordeste, levar mais proteína. Foi quando ela começou a descer e se espalhou pelo Brasil inteiro. A verdade é que se perdeu o controle, não se consegue mais erradicar”, avalia Petrelli Júnior, que nesta semana foi eleito um dos 100 mil pesquisado­res mais influentes do mundo.

O governo contesta cada uma dessas afirmações e defende a criação da tilápia nos reservatór­ios, proposta que já foi tentada por diversas administra­ções, inclusive nos tempos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas que pouco avançou.

Ao Estadão, o secretário da Pesca, Jorge Seif Júnior, disse que, no ano passado, o governo deu início a uma série de estudos científico­s, envolvendo técnicos e academia, para analisar o projeto em Itaipu e seu impacto ambiental. “A tilápia já está na maioria das bacias hidrográfi­cas brasileira­s, mas ela não se estabelece. Ela já tem uma caracterís­tica de ser presa, e não predadora. Os relatórios mostram que ela não é uma ameaça para as principais espécies nativas brasileira­s. Esse é o principal ponto. Nosso maior desafio era saber se seria uma ameaça ou não”, disse o secretário.

Potencial

“Hoje, todo o Brasil produz 320 mil toneladas/ano. O potencial, somente de Itaipu, é de 400 mil ton/ano.” Jorge Seif Júnior SECRETÁRIO DE PESCA E AQUICULTUR­A

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GABRIELA BILO / ESTADÃO - 29/9/2020 Usina de peixe. Itaipu produziria 400 mil ton/ano de tilápia

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