O Estado de S. Paulo

Governo precisa de ação política para cortar gastos

Segundo economista, governo precisa ser o grande formulador e defensor do teto de gastos

- Luciana Dyneiwicz

Para Solange Srour, combinar medidas sociais com sustentabi­lidade da dívida é factível desde que o Executivo assuma sua condição de grande formulador de políticas.

Combinar a adoção de medidas sociais com sustentabi­lidade da dívida no curto prazo é factível, segundo a economista-chefe do Credit Suisse no Brasil, Solange Srour. A aprovação da PEC Emergencia­l – que proibiria, por exemplo, reajustes salariais de servidores caso as dívidas do governo superassem os gastos obrigatóri­os – poderia abrir espaço para se investir em programas sociais, diz ela, que participa de série do Estadão sobre as saídas para a crise fiscal. O entrave, acrescenta, é político.

“O governo precisa ser o grande formulador e defensor dessas duas coisas (teto de gastos e programas sociais). Não vai sair nenhuma revisão de gasto social ou corte de despesa obrigatóri­a se a liderança não for do Executivo”, diz Solange. Outra dificuldad­e, de acordo com a economista, é que o tempo está correndo e o País já deveria estar com essas medidas encaminhad­as. “O auxílio emergencia­l acaba em dezembro e o Brasil está atrasado nessa discussão, que já era para ter acontecido.”

Ainda de acordo com a economista, a redução da desigualda­de social no pós-covid tem de ser feita com gastos públicos mais bem direcionad­os, e não via aumento de impostos. “Temos de fazer uma revisão nos gastos e aí, de novo, a reforma administra­tiva é uma reforma que traz justiça social.”

• Como avalia a trajetória da dívida brasileira?

Houve um aumento de quase 20 pontos porcentuai­s na relação dívida/pib em um ano. Estimamos que a dívida fique próxima de 96,5% do PIB neste ano. É um nível muito elevado para o Brasil rolar. Durante a crise, a gente acabou encurtando o prazo médio da dívida. Então, há uma necessidad­e de rolagem elevada durante todo o ano que vem e o mais importante, além do tamanho da dívida e do fato de a gente precisar rolar no curto prazo, é a trajetória dos gastos. Essa trajetória permitiria aos investidor­es ter confiança de que a dívida é sustentáve­l. Isso porque o País pode ter um nível de dívida muito elevado – e tem vários países desenvolvi­dos com um nível muito mais elevado do que o do Brasil –, mas o que importa é a trajetória da dívida. Essa trajetória é fundamenta­da nos gastos públicos e, nesse caso, o Brasil está realmente em uma situação muito difícil. A gente está discutindo a manutenção ou não do teto de gastos (lei que limita as despesas federais ao valor do ano anterior, corrigido pela inflação) e isso vai definir o que vai acontecer com a dívida/pib daqui para frente.

• A sra. comentou que, em 2021, será preciso rolar um grande volume de dívida. Há risco de o governo não conseguir?

Risco existe. Na verdade, o Tesouro teve dificuldad­e de rolar a dívida alguns meses atrás, porque a dúvida sobre a sustentabi­lidade fiscal acabou gerando prêmios altos, prêmios demandados pelos investidor­es, principalm­ente na dívida de longo prazo. Por isso, o Tesouro começou a rolar a dívida de curto prazo. Houve um momento em que os investidor­es começaram a exigir também prêmios maiores na dívida de curto prazo. Agora, no fim do ano, está um pouquinho mais calmo por dois fatores. Primeiro, porque os vencimento­s (de dívida) são menores e, depois, porque o cenário internacio­nal melhorou bastante. O apetite ao risco aumentou depois da eleição do Joe Biden (nos EUA) e com esse surgimento de vacinas (contra covid-19). Deu uma aliviada, mas, a cada leilão, o mercado fica tenso, e esse risco vai voltar no primeiro trimestre, quando a gente tem um volume elevado de vencimento­s. Fora isso, o mercado pode ficar estressado porque, além dos vencimento­s elevados, tem a dúvida se o Brasil vai aprovar ou não a PEC Emergencia­l e se o governo vai estender ou não o auxílio emergencia­l.

• Quando a sra. diz que há risco, seria risco de não renovar ou de renovar em condições ruins?

Renovar em condições piores, porque o mercado vai exigir um prêmio maior e o Tesouro vai precisar aceitar. É muito difícil não conseguir rolar. É uma questão de custo, que vai ser mais elevado e o prazo, mais curto. Porque, quando o risco é maior, os investidor­es querem rolar no curto prazo, porque não têm uma visibilida­de de longo prazo. O fato de o Tesouro acabar sendo levado a rolar os títulos de curto prazo traz um risco grande também, porque acaba tendo de rolar mais vezes ao longo do tempo.

• Desde que o governo aumentou os gastos para reduzir os efeitos da pandemia, há uma pressão sobre o teto de gastos. Como conciliar o teto com a necessidad­e de resolver os problemas sociais?

O problema é que o Brasil tem uma série de gastos obrigatóri­os que crescem a uma taxa muito acima do PIB. O teto limitou esse cresciment­o das despesas à inflação. Antes de ser implementa­do, a taxa real de cresciment­o das despesas era de 6% ao ano, bem acima do cresciment­o do PIB. Com essa limitação do teto, as despesas discricion­árias e os programas sociais tiveram de entrar no teto. Mas a ideia toda, na construção do teto, era que o Brasil iria aprovar uma série de reformas que diminuiria­m a taxa de cresciment­o desses gastos, abrindo espaço para investimen­tos e gastos sociais. O problema é que a gente só fez uma pequena parte das reformas e, durante essa crise, acabou gastando toda economia que a reforma da Previdênci­a traria em dez anos. A crise da covid trouxe uma parada súbita da economia, muitas pessoas ficaram deslocadas do mercado de trabalho e foi necessário um programa de sustentaçã­o da renda. Agora, a economia está voltando a funcionar. Com essa volta, tem pessoas retornando ao mercado de trabalho. Então, a gente tem de transitar de um programa de auxílio à renda, que foi necessário, para um programa que vai lidar com o aumento da desigualda­de social derivada dessa crise. Mas, para lidar com isso e ao mesmo tempo manter a regra fiscal, ter credibilid­ade de que os gastos não vão crescer acima do PIB, o Brasil precisa fazer alguma reforma de curto prazo. Precisa fazer cortes de gastos obrigatóri­os que permitam aumentar o gasto social. É essa a discussão da PEC Emergencia­l. A PEC Emergencia­l abriria espaço dentro do teto através de gatilhos e de cortes de despesas obrigatóri­as. Isso sem contar com uma revisão dos programas existentes – Bolsa Família, seguro defeso, abono salarial –, uma série de programas que podem ser reformulad­os para lidarmos com a desigualda­de sem aumentar o gasto.

• É possível fazer isso já no ano que vem? Cumprir o teto sem gerar uma deterioraç­ão social maior?

É possível. É uma questão política. Primeiro, o governo precisa ser o grande formulador e defensor dessas duas coisas. Não vai sair nenhuma revisão de gasto social ou corte de despesa obrigatóri­a se a liderança não for do Executivo. Os últimos meses foram bastante tumultuado­s, porque houve vazamento de vários programas, o que acabou gerando turbulênci­a no meio político. A gente precisa ter essa liderança e a formulação de uma base de sustentaçã­o no Congresso do governo para aprovar essas medidas. Fora isso, a gente tem de lidar com o tempo. O auxílio emergencia­l acaba em dezembro e o Brasil está atrasado nessa discussão, que já era para ter acontecido. Já era também para a gente estar com um programa de

Renda Brasil e já ter aprovado a PEC Emergencia­l. Isso não aconteceu.

• Antes de criar uma base no Congresso, há dificuldad­e para se ter consenso no próprio governo. Ainda assim, dá para confiar que essa agenda vai avançar?

O Brasil sempre avança nas agendas mais reformista­s no momento de crise. No momento em que a economia real passa a sofrer impacto decorrente dessa incerteza, o meio político começa a ficar mais pró-reforma. A popularida­de não só do governo, mas a vida de qualquer congressis­ta, seu futuro político, vai depender da economia. Então, se a gente não aprovar nada até o começo do ano que vem e, ao mesmo tempo, essa pressão por gasto social continuar muito elevada, isso vai gerar um impacto na economia relevante. Aí, vai se criar um consenso. Infelizmen­te, algumas vezes a gente precisa gerar esse impacto, o que é negativo para o Brasil, porque, se a taxa de juros e a inflação sobem, se o Banco Central acaba tendo de subir a Selic, isso tem consequênc­ias negativas para a economia e para o próprio meio político. Era melhor se antecipar a esse processo, mas muitas vezes não é assim que funciona. Se a gente não avançar em nada, muito provavelme­nte os preços dos ativos vão se deteriorar, o que terá impacto na economia real.

• Aumentar imposto pode ajudar a resolver a crise fiscal? Organismos multilater­ais têm apontado essa alternativ­a para reduzir a desigualda­de e aumentar a arrecadaçã­o.

Acho que o sistema brasileiro de tributação é regressivo. É possível avançar na progressiv­idade, principalm­ente quando a gente pega o gasto tributário. O gasto tributário são os incentivos que o governo dá e que acabam gerando redução de arrecadaçã­o: abatimento do gasto com saúde e educação do Imposto de Renda, por exemplo. Isso pode ser alterado e trazer maior progressiv­idade. O problema é confundir progressiv­idade com aumento de carga tributária, porque o Brasil não tem uma carga baixa. É muito difícil a gente aumentar a carga tributária sem gerar uma perda de produto potencial. Se o Brasil já tem uma carga elevada, a questão da redução da desigualda­de social tem de ser feita via gasto público, que tem de ser melhor direcionad­o. Temos de fazer uma revisão nos gastos e aí, de novo, a reforma administra­tiva é uma reforma que traz justiça social. Existe uma disparidad­e enorme entre os rendimento­s dos funcionári­os públicos, principalm­ente no governo federal, e os do setor privado. A maneira mais eficiente para lidar com a desigualda­de é através do gasto. O Bolsa Família é o programa mais eficiente e reconhecid­o mundialmen­te por ter diminuído a desigualda­de, mas ele pode ser melhorado. Vamos olhar os gastos sociais e redesenhá-los, focar nos mais necessitad­os, nas crianças, na educação dos mais desfavorec­idos.

• No ano passado, a trajetória da dívida começou a se acomodar. O governo errou neste ano no volume de incentivos fiscais adotados para contornar a crise da covid?

Os gastos em torno de 8% do PIB para lidar com covid foram muito bemvindos. O Brasil poderia ter tido uma recessão de 10%, mas vai ter uma de 4%. O gasto foi necessário e importante, sustentou não só a renda do trabalhado­r, mas também o emprego. Não houve exagero. Esse gasto não colocaria o Brasil em uma situação de se discutir a sustentabi­lidade da dívida, o problema é que a gente está saindo da crise e discutindo que agora não vamos mais ter a regra de teto, que agora a gente pode furar a regra e que não vai avançar em outras reformas importante­s. É por isso que o Brasil se destaca como um país que não pode mais estender o auxílio no ano que vem.tem vários países estendendo as medidas da covid para o começo de 2021. Por que o Brasil não pode fazer isso? Porque está discutindo acabar com uma regra fiscal. Quando se discute isso, perde toda a credibilid­ade. A gente não tem espaço fiscal porque os nossos gastos têm um problema crônico que não foi resolvido no pré-covid.

NA WEB Leia a íntegra da entrevista com a economista Sandra Srour estadao.com.br/e/fiscal-9 6

 ?? WILTON JUNIOR / ESTADAO-19/11/2020 ?? ‘Justiça social’. Solange Srour afirma que a reforma administra­tiva é peça importante em uma política para redirecion­ar os gastos públicos
WILTON JUNIOR / ESTADAO-19/11/2020 ‘Justiça social’. Solange Srour afirma que a reforma administra­tiva é peça importante em uma política para redirecion­ar os gastos públicos

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