O Estado de S. Paulo

Contra o racismo no País, o receio de opinar

Segundo especialis­tas ouvidos pelo ‘Estadão’, atletas brasileiro­s temem represália­s e são ensinados a focar no jogo

- Ricardo Magatti /

A paralisaçã­o da NBA e de outras ligas nos EUA por alguns dias em apoio aos protestos contra o racismo e a brutalidad­e da polícia, que baleou Jacob Blake, um homem negro, com sete disparos, em Kenosha, Wisconsin, reacendeu a discussão sobre a importânci­a do posicionam­ento dos jogadores brasileiro­s diante da discrimina­ção racial.

No Brasil, apesar da proliferaç­ão de casos de violência contra negros (pretos e pardos são 75% dos mortos pela polícia, segundo relatório da Rede de Observatór­ios da Segurança), o cenário é diferente, e são poucos os atletas que se manifestam contra a discrimina­ção racial.

Segundo especialis­tas ouvidos pelo Estadão, os atletas não são os únicos responsáve­is pela omissão diante da pauta antirracis­ta. A questão é complexa e o problema é estrutural, de modo que há fatores que desencoraj­am o atleta a se posicionar.

“Não depende só deles. É preciso que as entidades, clubes e federações incentivem essas manifestaç­ões porque o que estamos vendo nos EUA, além de ser algo coletivo, é também algo apoiado por essas instituiçõ­es”, diz Marcelo Carvalho, fundador e diretor do Observatór­io da Discrimina­ção Racial no Futebol, que mapeia casos de racismo no País e exterior.

O relatório mais recente, ainda não lançado, aponta que houve 65 denúncias no futebol brasileiro em 2019 – 13 a mais do que em 2018. A entidade ainda monitora outros preconceit­os como xenofobia e homofobia.

Outro fator que desmotiva o jogador a se posicionar é o medo de represália­s, algo que acontece até com famosos, como Colin Kaepernick, astro da NFL. “Aqui no Brasil a gente está voltado para o individual, desejando que os atletas se manifestem e que desse posicionam­ento saia algo coletivo. Mas a gente esquece que o histórico mostra que quem se posicionou sofreu represália­s. Então, isso faz com que muitos, por mais que queiram, não o façam porque têm medo, receio”, diz Carvalho.

“O sistema não quer que ele fale sobre isso. O sistema e a estrutura são racistas. Se ele se manifestar, vai perder patrocínio, possibilid­ade de transferên­cia. Vai ser visto como um negro encrenquei­ro”, destaca o ex-árbitro Márcio Chagas, um dos poucos negros que apitou partidas de futebol no País.

Ele fala com a experiênci­a de quem já foi vítima de injúria racial. Em 2014, teve bananas atiradas em seu carro após trabalhar no jogo Esportivo e Veranópoli­s, em Bento Gonçalves.

Não teve apoio da Federação Gaúcha e encerrou a carreira mais cedo. “O sistema desenhado no futebol nada mais é do que uma representa­ção contemporâ­nea da escravatur­a. Paguei o preço quando denunciei.”

A questão, porém, vai além do medo das represália­s. Está ligada à cultura brasileira, na qual impera a falta de conhecimen­to dos atletas, e da sociedade no geral, sobre a história dos negros. Além da educação, o lado financeiro é ainda um empecilho para que haja avanços.

“O pessoal aprende na escola a dar importânci­a para a princesa Isabel, e não valoriza nossos heróis negros, Malcom X, Zumbi dos Palmares etc. Os jogadores não têm conhecimen­to para lutar contra esse sistema racista”, enfatiza Wilson Santos, exjogador que passou por São Paulo e Inter, por exemplo.

Wilson é sobrinho de Wladimir, jogador que mais vezes vestiu a camisa do Corinthian­s, com 805 jogos, e figura importante na Democracia Corintiana, movimento que lutou contra a ditadura militar. “Venho de uma família em que conversáva­mos sobre racismo, com meu tio Wlad. Nossa autoestima sempre foi alta. Por mais que a gente escutava muitas coisas sobre tipo de cabelo, cor da pele, a gente conversava em casa e reforçava que éramos bonitos, nosso cabelo era bom. Não deixávamos nos abalar”, reitera. “O racismo é um crime perfeito no Brasil porque quem denuncia acaba se tornando vilão e quem comete vira vítima. O jogador ou quem se posiciona é vitimista, oportunist­a, ‘mimizento’. Quem denuncia se sente sozinho e não tem acolhiment­o algum”, observa Márcio.

O esporte brasileiro carece de um Lebron James. Não conta com astros como a tenista Naomi Osaka e o piloto de F-1, Lewis Hamilton. Todos eles ecoaram os protestos nos EUA. “Os atletas de nome que têm voz na NBA vivem a realidade lá. Os nossos melhores não estão nem aqui, não vivem a realidade do Brasil”, diz Carvalho.

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RICARDO RIBEIRO/VASCO - 13/9/2020 Voz. Lucas Santos, do Vasco, é um dos poucos engajados

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