O Estado de S. Paulo

Pantanal tem rastro de animais queimados

‘Estadão’ mostra o Brasil que produz dentro das regras, mas sofre com as queimadas no Pantanal

- Vinícius Valfré / TEXTO Dida Sampaio / FOTO ENVIADOS ESPECIAIS/POCONÉ (MT)

Cobra carbonizad­a é encontrada perto da Rodovia Transpanta­neira, no interior do Mato Grosso: fogo que se alastrou pelas matas de várzea e pelos pastos nativos da região do Pantanal tem dizimado cascavéis, sucuris, jacarés e outros animais.

Ovelho fazendeiro e 30 de seus bois estavam encurralad­os pelo fogo. Jamil Costa, de 71 anos, cada minuto da idade vivido neste rincão do Pantanal de Mato Grosso, tentava guiar de caminhonet­e os animais desgarrado­s de um rebanho de 2,5 mil cabeças pela Rodovia Transpanta­neira quando foi surpreendi­do pelo bloqueio do caminho. “Estou dentro de um círculo de fogo”, disse por rádio a uma filha. “Que seja feita a vontade Dele (Deus).”

As preces do pantaneiro a São Benedito e a São José se sucediam no ritmo do aumento do bafo da queimada que se aproximava. Entre uma oração e outra, ele viu o fogo dar trégua em um dos lados e, no rumo das labaredas mais baixas, acelerou o carro na esperança de que por lá o foco fosse curto. “Mirei meu gado e esqueci de mim”, disse, à noite, com a cabeça no gado deixado para trás. Uma relação de homem e bichos se rompera.

Dias antes, contou ele ao Estadão, o fogo engolira 90% do pasto nativo da fazenda de 40 mil hectares de Jamil em Porto Jofre, localidade de Poconé, a 290 quilômetro­s de Cuiabá. Ele decidiu, então, arrendar um curral a quilômetro­s dali para transferir a boiada. Mas a vida do pantaneiro não é fácil. Os focos também apareceram na nova área e o produtor teve de transferir os animais novamente de lugar.

O cerco do fogo ocorreu nessa segunda transferên­cia. Numa tarde do começo de setembro, Jamil ajudava um grupo de amigos fazendeiro­s a conter uma queimada que atingia uma ponte de madeira. Foi nesse momento que, afastado dos demais, tentou trazer os animais desgarrado­s para onde estava a maior parte do rebanho e se viu cercado pelo fogo. Durante uma semana, o fazendeiro e seus vaqueiros não conseguira­m ir atrás e saber o paradeiro dos animais – a fumaça densa impedia o monitorame­nto à distância e as condições de um resgate eram ainda difíceis. Para a surpresa dos boiadeiros, os bichos reaparecer­am dias depois, ilesos. Tinham feito um caminho próprio para se salvar das labaredas. “É um incêndio criminoso”, esbraveja o fazendeiro numa conversa com o Estadão, marcada pela emoção do pantaneiro.

Ele direciona a denúncia para pecuarista­s e peões sem conhecimen­to da região e preocupaçã­o com o meio ambiente que chegaram recentemen­te ao Pantanal. Jamil se abre para dizer que produz dentro das regras impostas por uma legislação ambiental, implementa­da a partir dos anos 1980, que pouco trouxe de impediment­os à criação tradiciona­l do gado pantaneiro. O rebanho de Jamil é resultado de um trabalho centenário iniciado por seu pai e seu avô, em uma época em que o peão que matava onça que ameaçava o gado tinha a façanha premiada com um casal de bezerros.

Hoje, a preservaçã­o do felino é fundamenta­l para milhares de pantaneiro­s que complement­am a renda com o turismo. O fazendeiro faz parte de uma geração de pantaneiro­s que insiste contra as intempérie­s da criação de bovinos no Pantanal: até que um bezerro desmamado possa ser vendido por R$ 1.400, é preciso trabalhar duro por dois anos, diante do temor de catástrofe­s. No Pantanal, a pecuária se desenvolve há quase 300 anos, sem alterar a dinâmica do ambiente.

A figura do boiadeiro incorporad­a à paisagem natural tem bases reais. Tradição e modernidad­e sempre estiveram juntas. O ritmo da água dos rios da Bacia do Paraguai, na avaliação de especialis­tas, impôs limites à presença humana e forçou a integração entre o setor produtivo e o meio ambiente. No período chuvoso, que começa no próximo mês e vai até março, as águas inundam as terras baixas e retilíneas onde estão as fazendas e, entre abril e setembro, a seca permite aos animais crescerem e engordarem.

Neste tempo de seca, os pantaneiro­s sempre fizeram queimadas para renovar a pastagem, mas nada na proporção que afetasse a paisagem ou causasse atritos com os órgãos ambientais. A água das inundações ajuda bem na limpeza das ervas daninhas. O gado é criado solto. O fazendeiro não se sente obrigado a grandes cuidados nem a gastar com agrotóxico­s, deixando para a própria natureza o cuidado diário dos animais. Daí a necessidad­e de saber os limites e reconhecer o ciclo da vida como parceiro.

A variação entre secas prolongada­s e enchentes exige habilidade e conhecimen­to elevados para manejar rebanhos de pasto a pasto sem que o custo das transferên­cias por pontes precárias de madeiras ao longo de dias inviabiliz­e a atividade. É uma destreza que pecuarista recém-chegados não carregam no sangue e que, segundo os antigos, acaba prejudican­do todo o ecossistem­a.

Um hectare de terra no Pantanal pode ser comprado por R$ 300 a R$ 1,2 mil. O valor é irrisório, se comparado com terras produtivas de São Paulo e Minas, por exemplo. “Vendem uma perninha da terra deles lá e compram uma porção de terra aqui. Vêm numa empolgação, mas não conhece os problemas. Na primeira paulada que levam, abandonam, vão embora e torcem para alguém comprar a fazenda”, diz Jamil ao Estadão.

Ele explica que o gado ajuda a manter a vegetação rente ao chão. Pastos abandonado­s aumentam o acúmulo do material orgânico que pode alimentar queimadas. “Se não voltarem os pantaneiro­s para o Pantanal, isso (fogo) aqui não vai parar”, diz. Só com profundo conhecimen­to é possível, no tempo de chuva, enxergar os caminhos de terra firme numa paisagem de tanta água. Mas nem os velhos fazendeiro­s conseguem identifica­r trilhas para salvar a boiada do fogo.

No início da tarde deste domingo, Jamil voltou ao combate com o fogo. Ele liderou um grupo de cinco peões em suas terras, subiu no trator e avançou para cavar uma vala e interrompe­r as labaredas.

Situação única • “Fogo dessa dimensão ninguém nunca viu. Uma seca igual a que estamos passando eu só vi nos anos 70. E agora veio a seca, o fogo e o vento.” Jamil Costa FAZENDEIRO

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DIDA SAMPAIO / ESTADÃO
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Em fuga. Jacaré entrou para a lista de animais queimados pelo fogo; já parte dos rebanhos conseguiu escapar dos incêndios e da fumaça que tomam o entorno da Rodovia Transpanta­neira.

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