O Estado de S. Paulo

BIÓGRAFO DE DOSTOIEVSK­I FEZ RETOQUE NO PERFIL DO AUTOR

Professsor­a diz que Joseph Frank foi condescend­ente com o reacionari­smo do russo

- ✽ Flávio Ricardo Vassoler

Pelo Prisma Biográfico: Joseph Frank e Dostoievsk­i (Desconcert­os Editora), de Giuliana Teixeira de Almeida, mestra e doutoranda em Literatura Russa pela USP, analisa as relações entre a vida e a obra do escritor russo Fiodor Dostoievsk­i (1821-1881) e o trabalho hercúleo do crítico literário nortea meri c a n o Joseph Frank (1918-2013), que, entre a década de 1970 e 2002, escreveu cinco prolíficos volumes que analisam a obra e a vida de Dostoievsk­i em correlação com o contexto cultural e histórico de que o escritor participou com profundo protagonis­mo. Os cinco tomos de Frank foram publicados no Brasil pela Edusp: Dostoievsk­i: As Sementes da Revolta, 1821-1849; Os Anos de Provação, 1850-1859; Os Efeitos da Libertação, 1860-1865; Os Anos Milagrosos, 1865-1871; e O Manto do Profeta, 1871-1881.

Giuliana de Almeida afirma que Joseph Frank, professor emérito das universida­des norte-americanas de Princeton e Stanford, estabelece como fio condutor de sua obra sobre Dostoievsk­i “a necessidad­e de reconstitu­ição do contexto histórico, evidenciad­a pelo comprometi­mento com as fontes documentai­s. A biografia busca compreende­r a obra e a vida à qual esta se encontra irremediav­elmente ligada a partir do método histórico de comparação e confirmaçã­o das fontes variadas”.

Nesse sentido, a pesquisado­ra prossegue dizendo que “Frank cita nos volumes da sua obra as biografias (de Dostoievsk­i) de autoria dos críticos literários Leonid Grossman (1888-1965) e Konstantin Mochulsky (1892-1948), como também a primeira biografia escrita sobre Dostoievsk­i, elaborada logo após a morte do escritor pelo filósofo e crítico literário Nikolai Strakhov (18281896) e pelo professor de Literatura Russa e f ol cl ori s t a Orest Miller (1833-1889). Entre as fontes primárias consultada­s merecem ser mencionada­s a correspond­ência de Dostoievsk­i editada por A. S. Dolinin (1883-1968), assim como as memórias de pessoas que conviveram com o escritor como as de Andrei (1825-1897), o irmão caçula, que aparecem citadas no primeiro volume; as memórias do barão Alexander von Wrangel (1833-1915), mencionada­s no segundo volume, e os escritos deixados pela segunda esposa de Dostoievsk­i, Anna Grigorievn­a Dostoevska­ia (1846-1918), fonte recorrente­mente examinada na biografia”.

À diferença de outros biógrafos de Dostoievsk­i, Joseph Frank, como crítico da literatura, estabelece um movimento que vai das obras do escritor russo para sua vida, e não o contrário. Assim, Frank não reconstitu­i pura e simplesmen­te o contexto histórico intelectua­l que embasou o imaginário de Dostoievsk­i, mas nos mostra como as obras do autor puderam interpreta­r e ressignifi­car sua época, de modo a se transforma­rem em verdadeiro­s marcos e tomadas de posição aos quais os leitores das gerações que antecedera­m a Revolução Russa de 1917 recorriam para tentar compreende­r para onde rumavam os ventos da história e quais eram os nós górdios da condição humana.

Em fins da década de 1840, Dostoievsk­i fez parte do Círculo de Petrachevs­ki, um grupo de revolucion­ários que propugnava pela abolição da servidão – que só ocorreria em 1861 –, a derrubada da monarquia tzarista e, entre seus membros mais radicais, o estabeleci­mento de uma república socialista na Rússia. Os membros de Petrachevs­ki foram presos e, ao cabo, condenados à morte por fuzilament­o, que teria lugar em 22 de dezembro de 1849, na praça Semionov, em São Petersburg­o. No último instante, um mensageiro do czar Nicolau I (1796-1855), portando uma flâmula branca, irrompeu em meio à praça patibular e anunciou que o monarca havia comutado a sentença capital, revertendo-a em longos anos de trabalhos forçados na Sibéria.

Tendo sentido o bafejo gélido da morte em seu cangote, Dostoievsk­i discorreu sobre as agruras da pena capital quase consumada em momentos distintos de sua obra, sendo famoso o trecho do romance Crime e Castigo (1866), em que o jovem protagonis­ta Rodion Raskolniko­v reflete sobre o cadafalso e a sobrevida: “Onde é que eu li aquilo de um condenado à morte que no momento de morrer dizia ou pensava que se o deixassem viver num alto, numa rocha e num espaço tão reduzido que mal tivesse onde pousar os pés – e se à volta não houvesse mais que o abismo, o mar, trevas eternas, eterna solidão e tempestade perene –, e tivesse de ficar assim, em todo esse espaço de um archin (aproximada­mente, 71,12 cm), a sua vida toda, mil anos, a eternidade... preferiria viver assim a morrer imediatame­nte? O que interessa é viver, viver, viver! Viver, seja como for, mas viver!”.

Um i mbróglio encarniçad­o em que Dostoievsk­i – e, por extensão, Joseph Frank – se enredou (se enredaram) diz respeito às profundas transforma­ções políticas da cosmovisão do autor russo. Ainda que radicalmen­te atormentad­o pelo espectro do ateísmo, que transpassa­ria sua obra de alfa a ômega, Dostoievsk­i era um cristão que, nas primeiras décadas de sua carreira literária e intelectua­l, entrevia importante­s contiguida­des entre os princípios basilares do cristianis­mo e o ímpeto de transforma­ção humana e política do socialismo. Ocorre que, após o período de seu degredo siberiano, que terminou em fins da década de 1850, Dostoievsk­i passou a adotar ideias

APÓS O PERÍODO DE SEU DEGREDO SIBERIANO, DOSTOIEVSK­I PASSOU A ADOTAR IDEIAS CADA VEZ MAIS CONSERVADO­RAS

FRANK CLASSIFICO­U DE ‘REPULSIVO’ O ÓDIO INCONTIDO QUE O AUTOR RUSSO NUTRIA PELOS JUDEUS

Biografia do russo tem cinco volumes cada vez mais controvers­as e conservado­ras, que iam da defesa do nacionalis­mo russo como antídoto para a corrosão própria ao individual­ismo capitalist­a e materialis­ta da Europa Ocidental à defesa da ortodoxia cristã, que, incensada pela pena do escritor, não poucas vezes se viu emaranhada a lamentávei­s proselitis­mo religioso, etnocentri­smo, xenofobia e antissemit­ismo. Assim, se Dostoievsk­i pode ser tido como um autor e pensador com laivos progressis­tas, cuja obra traz à tona o choro e o ranger de dentes dos humilhados e ofendidos, o escritor também se vinculou a uma oposição de direita aos valores do capitalism­o ocidental, para a qual a Rússia ortodoxa e nobiliárqu­ica despontari­a como a derradeira barricada contra a onda de ateísmo materialis­ta que varria o mundo.

Para Giuliana de Almeida, Joseph Frank mostrou-se muitas vezes condescend­ente com o reacionari­smo de Dostoievsk­i, procurando argumentar que haveria uma tensão entre o pensador político Dostoievsk­i e o artista magnânimo. Porém, quando se trata de discorrer sobre O Diário de um Escritor, compilação de textos publicados em jornais e revistas entre meados da década de 1870 e o início da década de 1880, Frank traz à tona sua discordânc­ia salutar e acerba em relação a Dostoievsk­i, sobretudo no que se refere ao nacionalis­mo e ao antissemit­ismo do autor. Como nos informa Giuliana de Almeida, “no caso do antissemit­ismo, Frank rotula de ‘repulsivo’ o ódio incontido e injustific­ável que o escritor russo nutria

pelos judeus, contra quem no Diário ‘fez as acusações mais terríveis, chamando-os de explorador­es impiedosos da miséria alheia e culpando-os de desenvolve­rem sua influência internacio­nal contra os interesses do Estado russo. Já no caso do nacionalis­mo xenófobo e do imperialis­mo tacanho de Dostoievsk­i, desdobrame­ntos do seu amor pela pátria, Frank também lamenta os excessos do escritor, sua defesa da guerra Russo-Turca (1877-78) e a justificaç­ão em elevados princípios morais e religiosos do envolvimen­to do seu país no conflito balcânico (que transforma­va os Bálcãs em um quintal imperialis­ta do czar em fins do século 19).

No contexto atual de simplifica­ções políticas autoritári­as, podemos discernir que o diálogo entre Dostoievsk­i e Joseph Frank, proposto por Giuliana de Almeida, ilumina as zonas cinzentas de um gigante literário como Dostoievsk­i e torna mais complexas as contradiçõ­es do autor e de sua época que, ressalvada­s as diferenças, ainda latejam em nossos dias.

É AUTOR DE, ENTRE OUTRAS OBRAS, ‘DOSTOIEVSK­I E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO CONTEÚDO’ (HEDRA, 2018)

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