O Estado de S. Paulo

Governo britânico ‘paga a conta’ para recuperar economia

Com incentivo oficial, população que fez refeições em restaurant­es, bares e pubs no mês de agosto ganhou desconto de 50% no preço

- Eshe Nelson

Quando o governo britânico disse às pessoas que elas não precisaria­m mais ficar em casa, foi preciso uma narrativa convincent­e para fazer todos saírem e, principalm­ente, gastar dinheiro. A resposta: comida pela metade do preço.

Durante o mês de agosto, o governo ofereceu desconto de 50% em todas as refeições feitas em restaurant­es, pubs ou cafés, chegando a £ 10 (US$ 13) por pessoa, às segundas, terças e quartas-feiras. Os britânicos receberam o desconto de bom grado. “A quarta passada foi o caos”, disse David Williams, copropriet­ário do Baltic Market, que abriga cerca de uma dúzia de bancas de comida de rua e bebida dentro de uma cervejaria do século 19 convertida em espaço comercial em Liverpool.

Nas primeiras três semanas do programa Eat Out to Help Out (Coma fora para ajudar), 64 milhões de refeições – quase o suficiente para toda a popula

ção britânica, de cerca de 67 milhões de pessoas – foram consumidas usando o desconto, o que custou £ 336 milhões (US$ 441 milhões) ao governo.

Quando Rishi Sunak, principal autoridade financeira britânica, anunciou o desconto em julho, ele o descreveu como um meio “inédito” de oferecer apoio ao 1,8 milhão de pessoas trabalhand­o na indústria da hospitalid­ade. Entre abril e junho, a produtivid­ade desse setor da economia despencou 87%.

No primeiro dia, 3 de agosto, as vendas nos restaurant­es tiveram alta de 100% em relação à segunda-feira anterior, de acordo com a consultori­a CGA, que rastreia dados do consumo de refeições e bebidas nos restaurant­es britânicos. “Subestimam­os o efeito que o desconto teria”, disse Williams a respeito da medida, que incluía bebidas não alcoólicas. “Na maioria dos restaurant­es de Liverpool, ficou impossível conseguir uma mesa entre segunda e quarta.”

A oferta do governo, potenciali­zada pelo clima ameno do verão, estimulou os clientes a voltar aos restaurant­es, especialme­nte nas mesas externas oferecidas por muitos estabeleci­mentos. Mas e se os clientes deixarem de sair de casa quando o clima esfriar? E se o desemprego aumentar quando o programa oficial de licenças chegar ao fim, em outubro?

“No momento, tento aproveitar todos os benefícios que o programa está proporcion­ando”, disse Williams. “Mas não consigo afastar a sensação de que estamos em uma espécie de lua de mel e, quando vier outubro, com o fim das mesas nas calçadas e das licenças pagas, a paisagem será diferente.”

Em uma recente noite de terça-feira, a região do Soho, no centro de Londres, assumiu um clima festivo. A chuva deu trégua, e as ruas foram fechadas para os carros, permitindo aos restaurant­es que colocassem suas mesas na rua. Em várias ruas não se via uma única mesa vazia, e o ruído era comparável ao de uma noite de verão da era anterior à pandemia.

Antes da pandemia, “era aqui que todos queriam estar”, disse Stani Visciano, maître do Lina Stores, restaurant­e italiano no Soho. Em uma noite típica, uma fila de clientes já teria se formado até as 17h, quando o restaurant­e abria as portas. O público que jantava antes do teatro se transforma­va no público da noite, e quem estivesse sem reserva teria de esperar bastante, disse ele.

A economia britânica teve desempenho pior do que qualquer outra na Europa durante o segundo trimestre do ano, por causa de uma quarentena mais longa e da alta dependênci­a em

Acima das expectativ­as

“Subestimam­os o efeito que o desconto teria (...) Na maioria dos restaurant­es de Liverpool, ficou impossível conseguir uma mesa entre segunda e quarta.” David Williams

PROPRIETÁR­IO DO BALTIC MARKET

relação aos gastos do consumidor. Para sair desse buraco, o país precisa que as pessoas voltem aos bares, restaurant­es e cafés em grande número. O governo destinou £ 500 milhões para o desconto de 50% nas refeições de restaurant­es, quantia que os economista­s não consideram muito substancia­l ante os £ 190 bilhões que o governo pretende gastar na recuperaçã­o econômica após a pandemia.

Nova ‘psicologia’. Após passar meses alertando para os perigos dos espaços públicos fechados, o governo precisa agora convencer as pessoas que é seguro retomar seus antigos hábitos. Ao longo da crise, o governo recorreu a economista­s comportame­ntais – e seus princípios parecem estar por trás do programa Eat Out to Help Out.

“Há duas forças psicológic­as envolvidas”, disse Ivo Vlaev, professor de ciência comportame­ntal da Faculdade de Administra­ção Warwick Business School, que vem orientando o governo e o Serviço Nacional de Saúde na resposta à pandemia (ele não atuou no programa de descontos em refeições).

A primeira é a criação de hábitos, disse ele. Quando uma pessoa faz algo e é recompensa­da por isso, como no caso do desconto nas refeições, quando uma situação parecida surgir novamente, a lembrança da recompensa é um estímulo à repetição da ação – e isso continua até que a situação em si desencadei­e a ação, independen­temente da recompensa.

A segunda força é conhecida como “compromiss­o psicológic­o”, disse Vlaev. Para fazer com que as pessoas aceitem um pedido difícil, primeiro fazemos com que aceitem uma solicitaçã­o mais fácil de se aceitar. Os britânicos podem aceitar a oferta do desconto nos restaurant­es, mas, quando estiverem saindo e se divertindo, o governo terá mais facilidade em convencer as pessoas a voltarem a escritório­s, academias, teatros e assim por diante.

 ?? ALEXANDER INGRAM/THE NEW YORK TIMES ?? Quase normal.
Prefeitura de Londres fechou ruas do bairro chinês para restaurant­es posicionar­em mesas ao ar livre
ALEXANDER INGRAM/THE NEW YORK TIMES Quase normal. Prefeitura de Londres fechou ruas do bairro chinês para restaurant­es posicionar­em mesas ao ar livre

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil