O Estado de S. Paulo

As liberdades de expressão e opinião

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O modo como Bolsonaro e seu entorno as interpreta­m está levando o País a uma trilha perigosa.

No mesmo dia em que os jornais divulgaram um ofício enviado à Procurador­iaGeral da República pelo ministro da Justiça, André Mendonça, pedindo a abertura de inquérito para apurar se uma charge e um artigo publicados num blog contra o presidente Jair Bolsonaro ferem a Lei de Segurança Nacional, um deputado bolsonaris­ta postou no YouTube um vídeo no qual ameaça o Supremo Tribunal Federal, afirmando que seus ministros serão destituído­s por uma corte militar se continuare­m tomando decisões contra o governo. “Os generais estão deixando claro que quem manda no jogo é o dono do fuzil, não é a caneta do sr. Fux”, disse ele.

O denominado­r comum desses fatos é a corrosão do significad­o das liberdades de expressão e opinião previstas pela Constituiç­ão. A iniciativa de Mendonça está fundada na premissa de que os autores da charge e do artigo contra Bolsonaro teriam exorbitado dessa liberdade. Já a fala do parlamenta­r bolsonaris­ta, no sentido de que pelas “regras do jogo” o que prevalece é a vontade dos donos do fuzil, foi classifica­da pelos governista­s como livre exercício do direito de opinião.

Esses dois pesos também podem ser vistos num recente rompante de Bolsonaro, quando estimulou seus seguidores a invadir hospitais públicos para averiguar se os leitos de emergência estavam ocupados. A entrada em unidades de saúde sem autorizaçã­o não é permitida e a incitação é prevista como delito pelas leis penais. Mas, assim que foi advertido para o fato de que cruzara a fronteira da legalidade, Bolsonaro se apressou em afirmar que teria falado em “fiscalizaç­ão”, não em “invasão”, e que exercera seu direito de opinião.

Semanas antes, ao criticar a política de isolamento social dos Estados e municípios para conter a covid-19, ele também havia dito que os brasileiro­s têm o direito de ir e vir e que as restrições à circulação impostas por prefeitos e governador­es eram inconstitu­cionais. Agiu, mais uma vez, interpreta­ndo o direito ao seu modo, como se a as liberdades individuai­s nada tivessem a ver com a situação excepciona­l em que se encontra a saúde pública. Desprezou o fato de que a conduta irresponsá­vel de alguns poucos poderia colocar em risco a vida dos demais cidadãos e ainda disse que a Constituiç­ão lhe permitia dar essa opinião.

Nesse sentido, quem, de fato, atenta contra a segurança nacional? Que há limites nas liberdades de ação e de expressão, isso não apenas é sabido como, igualmente, previsto pela própria ordem jurídica, que tipifica os crimes de calúnia, difamação e injúria. O que é perigoso, porém, é o modo como

Bolsonaro e seu entorno tentam corroer aos poucos esses limites. A estratégia é conhecida. Violam normas jurídicas e, quando denunciado­s, distorcem o que fizeram e falaram, contornand­o as proibições legais. Quando oposicioni­stas se manifestam, eles os acusam de serem “marginais” e “terrorista­s” e, fazendo uma interpreta­ção estrita da lei, exigem sua aplicação pelos tribunais. E, quando estes cumprem seu papel, agindo com isenção e não se deixando curvar por pressões do Planalto e das redes sociais, parlamenta­res bolsonaris­tas invocam o direito de opinião para intimidar a Justiça, afirmando que do fuzil dos generais sai bala e da caneta dos juízes só sai tinta.

Esse modo de interpreta­r a liberdade de expressão pelo bolsonaris­mo está levando o País a uma trilha perigosa. Ainda que no plano formal a democracia esteja intacta, no plano substantiv­o a Constituiç­ão vai sendo sistematic­amente afrontada. Ministros da área jurídica afirmam, sem corar, que a “vontade do povo” está acima das instituiçõ­es representa­tivas e pedem investigaç­ões contra jornalista­s. A cultura política baseada nas liberdades fundamenta­is vai sendo corroída por interpreta­ções estapafúrd­ias. E as resistênci­as às tentativas de acabar com a independên­cia dos tribunais vão sendo minadas.

Não nos esqueçamos de que o preço das liberdades públicas é a eterna vigilância. Há quem diga que a expressão está gasta. Infelizmen­te, os fatos mostram o contrário.

O modo de interpretá-las pelo bolsonaris­mo está levando o País a uma trilha perigosa

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