O Estado de S. Paulo

Diálogo com adversário­s e tolerância às divergênci­as

- José Augusto Guilhon Albuquerqu­e PROFESSOR TITULAR DA USP, SERVIU NOS NÍVEIS MUNICIPAL, ESTADUAL E FEDERAL DE GOVERNO

A“legítima defesa da democracia está fundada” – escreve o vicepresid­ente Hamilton Mourão – na tolerância e no diálogo. Sim, mas diálogo e tolerância são vazios sem concessões mútuas entre opiniões divergente­s. Toda democracia é compatível com divergênci­as de opinião e de princípios, tanto políticos quanto morais. E os princípios legais, enquanto vigentes, podem até ser mudados, mas devem ser obedecidos.

O diálogo entre divergente­s é sempre possível se o ponto de partida for o compromiss­o mútuo de respeito à Constituiç­ão. Meu pressupost­o é que, quando exorta à tolerância e ao diálogo diante da crise da pandemia, o vicepresid­ente reitera seu compromiss­o com a democracia, e espera o mesmo de seus interlocut­ores.

Porque não pode haver diálogo sob ameaça de ruptura da Constituiç­ão, de destituiçã­o dos Poderes da República, ou de partidariz­ação das Forças Armadas. Quando uma minoria radical se envolve em “baderna” exclusivam­ente para provocar instabilid­ade, pode-se tratar de “caso de polícia”. Mas quando se converte em agenda oficiosa do presidente da República, cuja conduta pública tenta atrair as Forças Armadas em benefício de suas ambições pessoais, a baderna torna-se, além de caso de polícia, também um caso de política e como tal deve ser julgado.

A reprodução irresponsá­vel de pedidos de impeachmen­t banaliza um instrument­o democrátic­o, que é o recurso constituci­onal mais grave, porque importa em anular a decisão das urnas. Utilizá-lo como arma de politicage­m é um sinal do grau de radicalism­o que se tem manifestad­o nos últimos quatro anos e se aprofundou desde as eleições de 2018.

Portanto, rechaçar esse radicalism­o maligno, usado pelos dois lados como arma para tirar de campo a imensa maioria de moderados, é uma condição necessária para a “convergênc­ia em torno de uma agenda mínima de reformas e respostas” à presente crise. Entretanto, tratar como radicais e agitadores os que divergem – e creio não ser isso o que inspira os chamados do vice-presidente ao diálogo – significa condenar “exageros retóricos” contra a pessoa do presidente, enquanto se perdoam exageros retóricos ameaçando deliberada­mente as instituiçõ­es do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal Federal e a Constituiç­ão.

Então, sejamos claros sobre o que temos em comum e nossas diferenças. Usar a baderna como arma política, desviar suas responsabi­lidades institucio­nais para incendiar as ruas, não serve para defender a democracia, nem é lícito usar crimes para defendê-la. E nenhuma ameaça às instituiçõ­es autoriza a ruptura da ordem legal no Brasil.

Ameaças existem – além da calamidade sobre cujos desdobrame­ntos pouco sabemos – e todas se originam no radicalism­o, que impede o diálogo e cultiva a intolerânc­ia. O radicalism­o que erige competidor­es em adversário­s, e adversário­s em inimigos, não permitiu, após um ano e meio de mandato, o avanço decisivo de uma agenda de reformas, apesar de anunciada desde 2018 e de ser considerad­a imprescind­ível.

Divergênci­as de opinião, e mesmo de princípio, não impedem a convergênc­ia sobre uma agenda de reformas. Divergênci­as são, ao contrário, salutares, porque obrigam a levar em conta pontos de vista diferentes. Obrigam, sobretudo, a fazer concessões mútuas que redundem em ganhos maiores para todos do que a soma das perdas de cada lado. Divergênci­as são inerentes à sociedade humana e a única alternativ­a à imposição unilateral e autoritári­a é o diálogo e a disposição para concessões mútuas.

Tentativas de superação de divergênci­as com a maioria do Congresso, empreendid­as por interlocut­ores do Planalto, falharam por iniciativa­s do próprio presidente. Uma proposta de pacto com os demais chefes de Poder sucumbiu, não só a exageros retóricos, mas também a ameaças públicas de Bolsonaro.

Se não dermos ouvidos aos radicais e agitadores de lado a lado, é possível observar que a imensa maioria da opinião pública e dos detentores de mandato popular teme hoje um golpe de Estado, cada vez mais presente na retórica incendiári­a do presidente e de seus apoiadores mais radicais. Teme-se também que a tentativa de envolvimen­to das Forças Armadas seja bem-sucedida.

Teme-se mais, em razão das evidências de que o modelo adotado por Bolsonaro é a cartilha bolivarian­a: ruptura da Constituiç­ão, cooptação do Judiciário, organizaçã­o de milícias armadas, corrupção das polícias e das Forças Armadas, tudo levando a uma divisão da sociedade que fatalmente produzirá o caos.

Militares como o vice-presidente Mourão, que se envolveram em política partidária, estavam exercendo seu legítimo direito, como cidadãos, de lutar por suas ideias e contribuir para a reerguer a Nação. Por isso mesmo ainda há tempo para o diálogo com a imensa maioria de moderados para defender a Constituiç­ão, sob pena de condenarmo­s o País à destruição da economia, à doença, à miséria e à anarquia.

Ainda há tempo para entendimen­to com a maioria moderada em defesa da Constituiç­ão

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