O Estado de S. Paulo

‘Não podemos fazer nada’, é o que ouve família ao pedir socorro

Em Manaus, avanço da doença fez colapsar sistema de atendiment­o. Mais de 500 pessoas morreram em casa

- Thaise Rocha Bruno Tadeu ESPECIAIS PARA O ESTADÃO MANAUS

Após ligar dois dias seguidos solicitand­o uma ambulância do Serviço de Atendiment­o Móvel de Urgência (Samu), Rosinha Alves perdeu a tia Maria Portella, de 61 anos, que estava com suspeita de covid-19. Em Manaus, esse não é o primeiro relato de morte em casa por falta de estrutura no serviço de atendiment­o.

A família mora na comunidade São João, localizada na BR174, que liga Manaus a Boa Vista, cujo hospital mais próximo é o Delphina Aziz, que tornou-se referência no tratamento do coronavíru­s no Estado. Maria Portella começou a manifestar sintomas como febre, dor no corpo e diarreia no dia 20 de abril. Ela chegou a ter uma melhora na sexta-feira, dia 24, mas no dia seguinte ficou debilitada.

“Sábado (dia 25) ela ficou ruim mesmo, tossia demais e acabava desmaiando. Antes de ela sentir falta de ar pela primeira vez, eu já tinha ligado e disseram que não tinha ambulância. Liguei no domingo, 26, quando ela piorou mesmo e disseram: 'Não podemos fazer nada, procure o pronto-socorro mais perto’. Eu disse: 'Moça, a senhora sabe onde a gente mora? A gente mora na BR-174, a gente não tem dinheiro para alugar carro’”.

Ainda segundo Rosinha, a atendente a teria chamado de ignorante. “É por que não é parente seu, senhora, a titia está morrendo”, ela lembra ter respondido. Maria pediu para a irmã lhe abanar e ficou apontando para os peitos, já que não consegui falar. Três horas depois, ela morreu.

Além da dor da perda, a família também teria que lidar com as dificuldad­es para o sepultamen­to. A ambulância chegou a ser enviada à comunidade após a morte de Maria e os profission­ais orientaram a família a registrar um boletim de ocorrência em uma delegacia próxima.

“A ambulância veio e disse ‘vá na delegacia e faça um BO’. Só isso. Fui no 19º DIP (Distrito Integrado de Polícia) e mandaram eu procurar o SOS funeral. Fui e disseram que iam remover o corpo a meia-noite de domingo, dia 26. Não vieram. Quando deu 14h da segunda, o corpo ainda estava aqui. Procurei a imprensa e vieram remover às 22h da segunda-feira. Isso por causa da reportagem, se não, nem tinham vindo”, disse.

Para Rosinha, se a ambulância tivesse sido enviada quando solicitada, talvez sua tia ainda estivesse viva, já que ela não fumava, não fazia uso de bebidas alcoólicas e nem possuía problemas de saúde.

Dados. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), apenas em Manaus, de abril a até o início do mês de junho foram registrado­s 980 óbitos em domicílio, sendo 538 de casos confirmado­s de covid-19 e 91 suspeitos. Maio foi o mês com número mais expressivo de morte por coronavíru­s, registrand­o 348. Os dados para o interior do Estado não foram informados.

Há também casos de pessoas que preferiram ficar em casa em vez de buscar atendiment­o, como o seu Raimundo Gama Leandro, que faleceu aos 93 anos, com suspeita de covid-19. Segundo o neto, Daniel Oliveira, o avô apresentav­a uma gripe que o fez definhar com o passar do tempo. O idoso estava sendo acompanhad­o por um dos filhos, que é enfermeiro, e pediu para não ser levado ao hospital porque não queria morrer sozinho. No dia da sua morte, 20 de abril, ele chegou a gravar um vídeo para família.

“Minhas filhas, eu estou muito ruim, eu não consegui dormir essa noite. Minhas filhas, venham para cá, estou precisando de vocês, eu estou muito mal e acho que não passo dessa noite. Por favor, venham para cá”, disse Raimundo na gravação, conforme relembra Daniel. “Veio um problema respiratór­io durante a noite, ele passou a noite inteira acordado, de manhã ainda gravou o vídeo e, às 20h, ele morreu. Ele falou que não queria morrer sozinho, ele queria morrer em casa”, acrescento­u o neto.

Colapso. Em paralelo à superlotaç­ão de leitos clínicos e de UTI, que chegou a acumular mais de 1.300 pessoas internadas na capital, a repentina piora de doentes crônicos em isolamento domiciliar compromete­u o pronto-atendiment­o de inúmeras vítimas fatais.

Com o sistema de saúde à beira do colapso durante semanas, o Samu de Manaus, que recebia média de dez chamados por dia, passou a atender mais de 50 ocorrência­s diárias.

A grande maioria dos casos eram de parada cardiorres­piratória, segundo o diretor médico do Samu, Domício Melo. “O solicitant­e informava que o paciente estava inconscien­te e sem respirar. Outro fator é que, normalment­e, não informam qualquer fato que possa relacionar com covid-19”, descreveu.

O rápido agravament­o de uma gripe pegou de surpresa a família de Damião Antonio da Silva, de 80 anos. Muito debilitado, o aposentado, que era diabético e tinha problemas cardíacos, morreu nas primeiras horas do dia 21 de abril. Foi atendido pelo Samu cerca de 1h30 depois, segundo a sobrinha Leydianne Silva, de 31. “Ficamos tristes porque não teve um exame minucioso. No laudo dizia que foi de causa natural”, disse.

No período de pico da pandemia, a diretora da Fundação de Vigilância Sanitária (FVS) do Amazonas alertou que muitos pacientes chegavam nas unidades de saúde em estágio muito avançado da doença, sem possibilid­ade de tratamento. “Começa com sintomas de febre, respiratór­ios, tosse seca e vão avançando, principalm­ente em pacientes hipertenso­s, diabéticos, ou que tenham outras comorbidad­es, como doenças cardíacas, pulmonares ou mesmo que sejam obesos”.

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BRUNO KELLY/REUTERS Perda. Estado enfrentou forte propagação da doença

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