O Estado de S. Paulo

Democracia defensiva

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Estado brasileiro precisa ser profundame­nte reformado para que o cidadão dele se sinta participan­te integral, com direitos e deveres, sob auspícios da Constituiç­ão.

Ante a perspectiv­a sombria de que o País mergulhe na violência, como resultado da escalada retórica autoritári­a do presidente Jair Bolsonaro e da disposição belicosa de seus camisas pardas, emerge um debate crucial sobre os mecanismos por meio dos quais a democracia se defende dos extremista­s que, maliciosam­ente, exploram as liberdades constituci­onais para tentar arruiná-la.

A Alemanha, por exemplo, construiu, logo depois da 2.ª Guerra, um arcabouço legal e cívico para proteger sua democracia da ação insidiosa dos herdeiros do nazismo. O objetivo explícito era impedir que a democracia liberal que se pretendia construir fosse arruinada pelo extremismo, como aconteceu com a República de Weimar, que o nazismo pôs abaixo em 1933.

Na reconstruç­ão do Estado alemão, o papel dos partidos – isto é, da representa­ção da vontade política dos alemães – foi reforçado, enquanto a formação de partidos extremista­s, tanto de direita como de esquerda, foi proibida. No mesmo sentido, não se confundiu a liberdade de expressão com o discurso de ódio, que foi proibido.

Além disso, o Tribunal Constituci­onal – que fica em Karlsruhe, a 670 km da capital, Berlim, e portanto geografica­mente distante das pressões das autoridade­s federais – conquistou o apreço de todo o país por defender os cidadãos das injunções do poder e por transforma­r o respeito à Constituiç­ão em demonstraç­ão de patriotism­o. A reverência à lei substituiu a antiga devoção alemã às autoridade­s fortes, de modo que a Constituiç­ão se tornou o elemento de coesão entre os cidadãos. Uma democracia com essas caracterís­ticas é muito mais sólida, mesmo diante da ameaça constante do extremismo.

O Brasil não teve nada parecido com o nazismo, e sua democracia já passou com louvor por testes de estresse bastante significat­ivos desde o fim do regime militar. Mas talvez a ameaça de ruptura desta vez tenha alcançado um patamar tal que torne inevitável articular mecanismos para proteger a democracia de seus inimigos, cada vez mais desabridos. E, assim como aconteceu na Alemanha, será preciso fazer uma reforma do Estado que vá muito além da simples reorganiza­ção administra­tiva.

Essa reforma precisa reduzir o tempo da burocracia, excruciant­e para os cidadãos que esperam valer seus direitos, tornando o Estado mais eficiente e responsivo. A lentidão estatal, que serve a propósitos obscuros, colabora decisivame­nte para que os cidadãos percam a confiança na administra­ção pública – e a descrença cresce à medida que, por outro lado, esse mesmo Estado se mostre rápido para despachar demandas de quem tem poder ou se relaciona bem com as autoridade­s.

É a impotência do cidadão ante esse Leviatã, a despeito dos amplos direitos que a Constituiç­ão lhe assegura, que alimenta a desilusão cívica que pode resultar na aceitação, quando não no desejo, de uma solução antidemocr­ática.

Esse cidadão desencanta­do é o mesmo que não se reconhece no Estado, e portanto não se sente participan­te de sua construção e de seu funcioname­nto. Foi isso o que historicam­ente facilitou a ascensão dos regimes totalitári­os na

Europa no passado recente. Uma reforma do Estado deve almejar, portanto, uma reconexão com os cidadãos, para que a democracia faça sentido de novo.

Para isso, esse Estado reformulad­o – necessaria­mente menor e menos dispendios­o do que é hoje – deve se voltar para a execução eficiente de políticas públicas em áreas como segurança, saúde, educação e saneamento básico. Deve, também, ter mecanismos que ensejem uma fiscalizaç­ão ampla e transparen­te dos funcionári­os públicos e das autoridade­s eleitas, responsabi­lizandoos pelas suas falhas. Por fim, mas não menos importante, deve ser capaz de estabelece­r parcerias com a iniciativa privada, para transforma­r ações estatais em ações cidadãs. Um exemplo bem-sucedido desse modelo, no Brasil, é o Comitê Gestor da Internet, que alcançou ótimos resultados ao unir Estado e sociedade.

Em resumo, o Estado brasileiro precisa ser profundame­nte reformado para que o cidadão dele se sinta participan­te integral, com direitos e deveres, sob os auspícios da Constituiç­ão – esta sim, fonte de toda a autoridade e da coesão nacional. Somente assim a democracia ganhará músculos para se defender de seus inimigos.

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