O Estado de S. Paulo

‘COZINHEIRO TEM DEVER DE ALIMENTAR’

- /MARCELA PAES

Mesmo com os restaurant­es fechados durante a quarentena, Morena Leite, do Capim Santo, não quis desacelera­r. A chef e empresária resolveu unir a cozinha e “a facilidade para conectar pessoas” em uma corrente do bem e hoje produz em média 1300 marmitas por dia – em Trancoso, SP e Itacaré – que são distribuíd­as para instituiçõ­es de caridade, hospitais e parte da comunidade local. Cuidando da filha de três meses, Morena coordena o projeto Capim Solidário diretament­e de Trancoso. Leia abaixo a entrevista com a chef.

• Como você reagiu à notícia da pandemia e, consequent­emente, o fechamento dos restaurant­es durante a quarentena?

Eu tinha vindo aqui pra Trancoso pro Festival de Música, já estava se falando da questão, mas ninguém sabia a proporção. De repente os aeroportos fecharam, o festival foi cancelado e eu não conseguia mais voltar pra São Paulo. Logo tomei a decisão de fechar a pousada que temos aqui. Nesse momento, conversand­o com os meus pais, fundadores do hotel, achei que também devia fechar os restaurant­es em São Paulo e do Rio. Muita gente achou precipitad­o porque o Doria ainda não tinha determinad­o nada, mas algo me falava que era o que eu tinha que fazer.

• E como está a situação com os funcionári­os?

A gente colocou a equipe de férias num primeiro momento. Depois eu tive que avaliar porque um dos restaurant­es de SP estava em obras, faríamos a inauguraçã­o por volta de 20 de abril. A construção parou e quando acabar a pandemia, eu terei ainda dois meses de obra antes de reabrir. Do time de 500 pessoas, 60% estão com contrato suspenso, 10% continuam trabalhand­o recebendo 75% do salário, e 30% eu tive que dispensar. Eram pessoas que trabalhava­m comigo há bastante tempo.

• Como foi esse processo de demissões para você?

Eu passei uma semana, 10 horas por dia, ligando para todo mundo. E isso me exauriu, quando acabei eu estava destruída. Quando as pessoas me atendiam elas já sabiam o que ia acontecer. Eu sentia a respiração do outro lado, um chorando... Foram

calls muito difíceis. Quando acabou eu senti uma tristeza, eu saí do meu corpo.

• A ideia de fazer as marmitas surgiu depois disso?

Antes da Páscoa, uma pessoa me falou que tinha recebido uma doação da Cacau Show de 3 mil ovos e me pediu ajuda para distribuir. Isso me resgatou. Passei três dias ligando para instituiçõ­es, conectando pontas. Organizamo­s motorista de táxi, motorista do Capim... Quando acabou, estava tão feliz que percebi: é isso. Tenho facilidade de conectar pessoas e não posso me dar o direito de ficar deprimida. Preciso fazer algo.

• Era uma forma também de utilizar a comida armazenada dos restaurant­es.

É. Eu, com a câmara fria lotada de alimentos, pensei ‘vou

Cecília Ramos cecilia.ramos@estadao.com Marcela Paes marcela.paes@estadao.com torrar essa comida’. Amanhã é amanhã, o hoje eu vou alimentar quem eu puder. No primeiro dia fizemos mil quentinhas com o pé nas costas porque usamos a cozinha do colégio São Luís, que é industrial. (Morena também é responsáve­l pela alimentaçã­o dos alunos da escola).

• Quantas marmitas vocês fazem em média por dia?

Em Trancoso, 200 por dia, em SP, mil, e em Itacaré, 100. O legal é que desde que o projeto foi divulgado, meu WhatsApp não para de receber ofertas de doações. São muitas empresas ajudando. É uma corrente do bem. As pessoas acham que essa onda de solidaried­ade vai acabar depois da pandemia, mas não vejo assim. Acho que as pessoas estão se transforma­ndo, prestando atenção. Os médicos têm o dever de cuidar e eu, como cozinheira, o dever de alimentar.

 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil