O Estado de S. Paulo

O que mais falta é lucidez

- •✽ ROGÉRIO L. FURQUIM WERNECK

É

hora de reler os parágrafos iniciais do famoso ensaio How to pay for the war, sobre o financiame­nto do esforço de guerra britânico, escrito por John Maynard Keynes em fevereiro de 1940, para aprimorar propostas preliminar­es que já tinha feito em dois artigos no Times,

em novembro de 1939, logo no início da guerra.

“Não é fácil, para uma democracia, se preparar para a guerra. Não é da nossa índole dar ouvidos a analistas e cassandras. Nosso forte é saber improvisar. Mas é hora de dar mais atenção ao que andam dizendo. Ninguém sabe quanto tempo isso vai durar. Na área militar, há convicção de que o mais seguro, por ora, é nos prepararmo­s para um longo enfrentame­nto. É inadmissív­el que, na área econômica do governo, continuem a se pautar por perspectiv­a distinta. O que nos falta, no front econômico, é lucidez e coragem. Não recursos materiais.”

“Coragem acabará surgindo se, da fadiga e do tumulto da guerra, as lideranças políticas conseguire­m extrair a lucidez requerida para perceber o que está ocorrendo e conseguir explicar ao público o que se faz necessário. E aí propor um plano socialment­e justo, que saiba fazer desse momento de tamanho sacrifício, não uma desculpa para adiar reformas que terão de ser feitas, mas uma oportunida­de para ir além do que até agora conseguimo­s, na redução das desigualda­des.”

“Mais lucidez, portanto, é o que mais precisamos. E isso não é fácil. Porque, como os muitos aspectos do problema econômico a enfrentar estão inter-relacionad­os, nada pode ser resolvido isoladamen­te. Cada uso dos recursos disponívei­s se faz à custa de um uso alternativ­o. E, uma vez decidido quanto poderá ficar disponível para consumo civil, ainda restará a mais intrincada de todas as questões, que é determinar a forma mais sábia de distribuir o consumo.”

O que é notável, passados 80 anos, em meio aos enormes desafios econômicos e sociais impostos pela pandemia, é quão atual continua sendo a preocupaçã­o central externada por Keynes nesses três parágrafos. O que ele mais temia, em 1940, é que faltasse a seu país a lucidez necessária para equacionar a penosa mobilizaçã­o de recursos que uma guerra prolongada passara a exigir.

O que mais se teme no Brasil de hoje, no front econômico, é que, na tumultuada mobilizaçã­o de recursos públicos que o combate à pandemia e a atenuação de seus desdobrame­ntos socioeconô­micos vêm exigindo, o País se perca nos excessos do imediatism­o. E bote a perder suas possibilid­ades de enfrentar com sucesso os desafios com que terá de voltar a lidar, quando a covid-19 tiver ficado para trás.

Não é o momento de medir esforços no combate à epidemia e a seus complexos efeitos colaterais. Mas é preciso assegurar que a colossal expansão de dispêndio público que terá lugar em 2020 seja reversível. E que tal expansão não seja perdularia­mente amplificad­a, na esteira de pressões indefensáv­eis dos aproveitad­ores de sempre, que agora tentam fazer bom uso da consternaç­ão do País com a pandemia, para orquestrar nova e devastador­a pilhagem do Tesouro.

É preciso, sobretudo, que as lideranças mais lúcidas do Congresso saibam separar o joio do trigo e conter a voracidade de governador­es e prefeitos, que vêm tentando se aproveitar do tumulto para repassar aos contribuin­tes federais parte substancia­l da conta acumulada do descontrol­e fiscal dos governos subnaciona­is.

É preciso ter em mente que, passada a epidemia, o País estará no fundo de uma recessão de profundida­de ainda não sabida, com um exército de desemprega­dos muito maior que os 12 milhões de desocupado­s do início deste ano. E que, quando tivermos de voltar a encarar a difícil agenda da retomada do cresciment­o, o desafio da consolidaç­ão fiscal terá assumido proporções que, há três meses, pareceriam inimagináv­eis.

Na penosa construção de uma sociedade mais próspera e mais equânime, precisamos estar preparados para um longo embate, em muitas frentes, que mal terá começado quando a pandemia for superada. Não é hora de complacênc­ia com assaltos ao Tesouro.

ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDA­DE HARVARD, É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMEN­TO DE ECONOMIA DA PUC-RIO

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