O Estado de S. Paulo

Shakespear­e, Einstein, SUS, covid-19 e o futuro

- Antonio Carlos do Nascimento

Nós nos reinventam­os diante das catástrofe­s e não o fazemos pelo bom senso. Fosse isso, as evidências escandalos­as de um planeta que esquenta e se intoxica nos abririam os olhos e partiríamo­s em missão para defendê-lo. A iminência da morte provoca o pânico e Shakespear­e retrata o quadro ao reduzir o inescrupul­oso Ricardo III a “meu reino por um cavalo” numa de suas cultuadas peças.

Quando eu era menino ouvi uma amiga de minha mãe dizer que chegaria o dia em que teríamos o dinheiro, mas não encontrarí­amos o que comprar. Pouco tempo depois li a dedução de Einstein para os desdobrame­ntos bélicos futuros: “Como vai ser a terceira guerra mundial eu não sei, mas a quarta será com paus e pedras”. Tais impressões futuras, apocalípti­cas, enquanto sejam apenas possibilid­ades, nunca se desgarrara­m daquilo que imagino possível e talvez provável para a humanidade.

Aqui e ali suicidas derrubam arranha-céus, estouram bombas em seus corpos, mergulham carros com explosivos em meio a multidões e lá se vão muitas vidas, às vezes milhares. O mundo decidiu globalizar, especialme­nte utilizando mão de obra barata, notadament­e asiática, e a qualquer barulho por lá faltam componente­s de toda sorte por aqui. Por outro lado, imensidões de terras são utilizadas para o cultivo de algum produto agrícola e não é raro após alguma safra o produtor não conseguir arrecadar para pagar o financiame­nto bancário, a depender de quanto a sua commodity variou no globalizad­o “mercado”.

Em Splendor in the Grass (título brasileiro, Clamor do Sexo), filme com Natalie Wood e Warren Beatty, vê-se a América na queda da bolsa de 1929 inutilizan­do milhões de papéis que passavam a não valer mais nada e alguns de seus proprietár­ios mergulhava­m em voos derradeiro­s dos altos prédios em Wall Street. Bud (Warren Beatty), filho de um daqueles barões da bolsa de valores, finda a película cultivando terreno numa área rural, no que havia restado do império familiar.

A lógica da sobrevivên­cia passa por nutrição orgânica e antes da guarida do alojamento precisamos ainda não ser retirados do ciclo por predadores, contexto bem demonstrad­o pelos moradores de rua. Mas o planeta em que uma metade de sua população não dispõe de vaso sanitário, enquanto a outra projeta a desnecessa­riedade dela mesma na substituiç­ão por aplicativo­s, precisou dessa expectativ­a dizimatóri­a para momentanea­mente colocar as importânci­as em seus devidos lugares.

Então agora alimentaçã­o é prioridade, no papel de predador um invisível vírus para o qual nos defendemos com higiene e neste momento não prescindim­os de alojamento­s que nos separem do entorno. Induzidos ou não, ainda que apenas provisoria­mente, estamos acordados com o tráfico, milícias, facções... com uma só palavra de ordem: sobreviver – com protocolos que são mais ou menos obedecidos de acordo com as facetas e a força com que o virtual caos se apresenta.

Nós nem sabemos se a covid-19 conseguirá em mesmo espaço de tempo ter números maiores que os feminicídi­os, ou daqueles que morrem no trânsito pela ação de motoristas embriagado­s, nos semáforos por terem sidos lentos em entregar bolsas e carteiras, ou nas alcovas por overdoses. Mas estamos cientes de que podemos morrer indistinta­mente, independen­temente de raça, religião ou classe social, e incrivelme­nte isso nos une, porém não pelo bom senso.

A depender da dimensão do desastre, e infelizmen­te não do quanto fomos capazes de impedi-lo, talvez restemos pouco modificado­s. Isso é ruim, por outro lado fazem bem algumas brasileira­s certezas.

A valorizaçã­o da imprensa profission­al e séria, que ao menos por enquanto foi desobrigad­a por nós de dizer aquilo que queremos e a aceitamos com a função que sua maior parte nunca deixou de exercer: nos informar.

O SUS, nosso Sistema Único de Saúde, tratado tantas vezes com desdém e descaso, mostra seu gigantismo na capacidade de cuidar. E provavelme­nte a exposição provenient­e de tantas ações realizadas por essa instituiçã­o produzirão o entendimen­to popular de seus mecanismos. O órgão atua em todas as faixas de cuidados e não se omite nas observaçõe­s preventiva­s que passam ao largo dos ouvidos de nossa gente. É provável que um revigorado perfil gestor do SUS e uma nova métrica de envolvimen­to do usuário com as linhas de cuidado oferecidas fortaleçam esse que é um dos maiores e mais justos programas de saúde pública do mundo.

Guardaremo­s as palmas que se derramaram tantas vezes das sacadas dos prédios às 20 horas em homenagem aos profission­ais de saúde e outros importante­s grupos. Esquecerem­os o barulho de colheres encontrand­o fundos de panelas para criar trilha sonora inapropria­da de um longa-metragem que ficará para a história como exemplo de uma das lutas humanas em seu instinto de preservaçã­o, e não de um vírus com ideologia política.

Planeta precisou da expectativ­a dizimatóri­a para pôr o que importa em seu devido lugar

✽ DOUTOR EM ENDOCRINOL­OGIA PELA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO (USP), É MEMBRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ENDOCRINOL­OGIA E METABOLOGI­A (SBEM)

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