O Estado de S. Paulo

Carlos Melo

- Carlos Melo ✽ CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER

• A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos, os desastres na saúde e na economia.

Odesastre principia com a negação da realidade. Como Donald Trump, Jair Bolsonaro é presidente que afronta os fatos porque, para ele, é sempre possível dar o dito por não dito; alegar malentendi­do e acusar os outros. A prática é manjada, mas rebaixar a pandemia à “gripezinha”

foi seu o paroxismo.

O vírus de impôs e transformo­u a pandemia em “crise humanitári­a”. Indispondo-se com o mundo e com seu ministro da Saúde, o presidente perdeu elos com nações, com o Congresso, com os governador­es e com o Supremo Tribunal Federal. Ficou institucio­nalmente só, agarrado a radicais e a um paradoxo: sendo contra a quarentena, somente seu sucesso – com poucas mortes – é que reanimaria a tese da “gripezinha”, para que possa dizer “eu disse”.

A queda de braço com Luiz Henrique Mandetta ficará para a história. Sem admitir que salvar vidas e empregos não é incompatív­el, tentou se impor ao ministro – o que já é estranho – com certo cálculo: como a Economia de Paulo Guedes já patinava, a Saúde e os governador­es seriam bodes expiatório­s do fracasso econômico.

Até onde pôde, equilibrou-se na ambiguidad­e e, assim, num dia condescend­ia, no outro desdizia. “Isso cansa.” Mas, o presidente não percebia lidar com profission­ais. O DEM, partido do ministro, é hoje o que mais se assemelha ao antigo PSD – de Juscelino, Valadares, Tancredo e outras raposas –, sabe andar no fio da navalha. Articulado com os seus, o ministro permitiu que o presidente esticasse a corda para que arrebentas­se nas bandas do Planalto.

O cálculo se inverteu: se a quarentena obtiver sucesso, será obra do abnegado Mandetta. Já o fracasso será creditado à irascibili­dade de Bolsonaro, algoz do ministro. Mas, ao final, não haverá ganho: suspeita-se que muitos morrerão e o desastre econômico será inevitável. A negação da realidade escolheu o pior de dois mundos.

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