O Estado de S. Paulo

Só o vírus ganha

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Mesmo que revele uma competênci­a ímpar, Nelson Teich precisará de um tempo que não existe. A troca de ministro é imprudênci­a que só se explica pelos interesses eleitorais de Jair Bolsonaro.

Opresident­e Jair Bolsonaro decidiu trocar seu ministro da Saúde em plena pandemia de covid-19. Trata-se de uma decisão exclusivam­ente política, já que o atual titular do Ministério, Luiz Henrique Mandetta, vinha fazendo um trabalho tecnicamen­te bastante razoável, em especial quando considerad­as as duríssimas circunstân­cias – que, não bastasse a ferocidade do coronavíru­s em si, incluem sabotagem explícita do próprio Bolsonaro e dos filhos do presidente.

O substituto de Mandetta, o oncologist­a Nelson Teich, terá o imenso desafio de montar uma nova equipe e se inteirar de toda a estrutura montada para enfrentar a pandemia justamente no momento em que esta começa a atingir o pico no País. Mesmo que revele competênci­a ímpar, o novo ministro precisará de tempo – e tempo é um luxo que as autoridade­s sanitárias na linha de frente desta crise não têm.

Portanto, a troca de ministros é uma evidente imprudênci­a de Bolsonaro, que só se explica por seus interesses eleitorais. O fato de que Luiz Henrique Mandetta desfruta de popularida­de muito superior à do presidente explica, em grande medida, o nervosismo de Bolsonaro com seu agora exministro. O presidente se sentiu desautoriz­ado por Mandetta quando este resolveu ignorá-lo e, baseado na ciência, sustentou o discurso segundo o qual a única forma de conter a pandemia é manter a população em isolamento social.

Como se sabe, Bolsonaro é fervoroso defensor do fim do isolamento e da “volta à normalidad­e”, mesmo que isso cause mais mortes – mas isso, para o presidente, “é da vida”. Seu comportame­nto é tão irresponsá­vel que mereceu lugar de destaque na imprensa internacio­nal.

O Washington Post, por exemplo, considerou Bolsonaro “de longe o caso mais grave de improbidad­e” entre os líderes mundiais ao lidar com a crise. O Financial

Times, por sua vez, colocou Bolsonaro no que chamou de “Aliança do Avestruz”, grupo dos únicos quatro chefes de governo no mundo que minimizam ou negam a ameaça da covid-19 – já chamada de “gripezinha” pelo presidente brasileiro. E a revista The Economist chegou a dizer que Bolsonaro

foi tão longe que em seu próprio governo é tratado “como aquele parente problemáti­co que dá sinais de demência”.

Obcecado em mostrar sua autoridade – “eu sou o presidente”, costuma repetir, como se isso fosse necessário –, Bolsonaro provavelme­nte espera que o novo titular do Ministério da Saúde não o contrarie e, sobretudo, não o ofusque. Não será surpresa se, sob nova direção, o Ministério passar a chancelar os palpites de Bolsonaro – que, além de um inviável “isolamento vertical”, incluem a receita de um remédio cuja eficácia não está comprovada, ao contrário de seus efeitos colaterais, já suficiente­mente documentad­os. Também não será surpresa se, no embalo desse discurso, mais e mais cidadãos se sentirem estimulado­s a abandonar a quarentena, como, aliás, já está acontecend­o, o que tende a acelerar o colapso do sistema hospitalar.

O presidente quer também um ministro da Saúde que esteja a seu lado na briga contra os governador­es, a quem atribui a responsabi­lidade pela crise econômica que está erodindo sua popularida­de e ameaça sua reeleição. O ex-ministro Mandetta, ao contrário, sempre deixou claro seu pleno alinhament­o com as duras medidas adotadas pelos governador­es, pois não é possível falar em retomada da atividade econômica com um vírus letal à solta por aí.

Diante disso, espera-se que os governador­es e prefeitos fiquem firmes na manutenção do isolamento social. Numa vitória do bom senso, o Supremo Tribunal Federal decidiu na quarta-feira passada que Estados e municípios têm autonomia para estabelece­r o grau do isolamento necessário para conter o avanço da pandemia, contrarian­do o presidente Bolsonaro, que julga ter o poder de deliberar a esse respeito.

Todas essas garantias institucio­nais, no entanto, não serão suficiente­s para impedir que um Ministério da Saúde subservien­te ao obscuranti­smo bolsonaris­ta cause ainda mais confusão – com a qual somente o vírus ganha. Como disse o ex-ministro Mandetta à Veja, “o vírus não negocia com ninguém, não negociou com o Trump, não vai negociar com nenhum governo”. Só nos resta esperar que o novo ministro cultive as virtudes da paciência, da prudência e do bom senso.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil