O Estado de S. Paulo

Cuidado com os desejos

- ZEINA LATIF E-MAIL: ZEINA.LATIF@TERRA.COM.BR ZEINA LATIF ESCREVE ÀS QUINTAS-FEIRAS CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP

Mais uma crise sem precedente­s. Dessa vez, com uma combinação terrível de elementos de crises passadas, alguns agravados: colapso dos mercados externos, como em 2008-09; falta de liderança e ação efetiva do governo, como em 2015; paralisia do setor produtivo, como na greve dos caminhonei­ros de 2018; e perspectiv­a de recuperaçã­o muito lenta, como no pós-recessão de 20152016.

A fragilidad­e fiscal, a difícil situação financeira de empresas e indivíduos, o espaço exíguo para políticas de estímulo e as possíveis idas e vindas nas políticas sanitárias até a imunização da população são fatores que dificultar­ão a recuperaçã­o.

Nesse contexto, discute-se a necessidad­e de evitar uma crise ainda mais grave por conta da insuficiên­cia de crédito ao setor produtivo.

Para tanto, o Congresso avança na aprovação de uma proposta de emenda à Constituiç­ão que amplia o poder de ação do Banco Central durante períodos de calamidade pública, autorizand­o a compra de papéis da dívida do governo e do setor privado no mercado secundário (papéis em carteiras do mercado), algo feito em economias avançadas. A intenção é aumentar a liquidez nos mercados e reduzir o custo do dinheiro.

O princípio pode parecer correto, mas requer ponderaçõe­s.

Primeiro, o estresse nos mercados não é fruto de uma crise financeira/bancária como em 2008-09, mas sim de uma dramática reavaliaçã­o de cenários econômicos. A direção de causalidad­e agora é outra: da economia para o mercado financeiro, e não o contrário.

Os investidor­es globais, já bem seletivos antes da pandemia, fogem de ativos de risco e correm para portos seguros, como títulos da dívida de países avançados. A saída de recursos de países emergentes é expressiva.

No Brasil, o quadro é mais complexo, pois havia um certo exagero no otimismo em relação ao cenário econômico e, diante dos juros baixos, uma exposição a risco nas carteiras dos investidor­es muitas vezes incompatív­el com a fragilidad­e da economia brasileira. O País destacou-se no passado pelos ganhos elevados, e agora, pelas maiores perdas.

Esforços para estabiliza­r o mercado financeiro serão pouco efetivos enquanto as incertezas sobre a extensão do isolamento social e o custo econômico não forem dirimidas.

Segundo, ainda que o mercado de dívida corporativ­a sofra com a falta de liquidez decorrente da postura mais defensiva de investidor­es, o estresse nesse mercado – dinheiro escasso e caro – reflete em maior medida o aumento do risco de calote das empresas.

É verdade que o mercado de crédito corporativ­o não bancário se expandiu muito - nas economias avançadas, foi alimentado pela injeção de liquidez pelos bancos centrais desde a crise de 2008-09; e no Brasil, pela queda da taxa Selic e do encolhimen­to do BNDES -, recomendan­do a ação dos governos.

No mundo avançado, os banco centrais ficaram sem opção. No Brasil, a ação do BC não trará o alívio necessário às empresas, pois o risco de crédito é elevado. Não se trata de elevar a liquidez no mercado secundário. É necessário prover garantias aos credores.

Terceiro, as políticas econômicas de países avançados não necessaria­mente funcionam bem em um país com instituiçõ­es não suficiente­mente sólidas e economia estrutural­mente frágil.

O BC não tem autonomia formal, deixando a instituiçã­o vulnerável a pressões para socorro; a elevada inseguranç­a jurídica poderá gerar passivos à União futurament­e; e a gestão das contas públicas é problemáti­ca. O Brasil é muito vulnerável a choques e crises.

Há muitos riscos no ambiente econômico, inclusive por conta da baixa efetividad­e das reações do governo à crise. Corremos o risco de as intervençõ­es do BC representa­rem uma janela para mais saída de recursos do País, com os investidor­es aproveitan­do para reduzir o risco de suas carteiras.

Aumentar os poderes do BC não trará o benefício esperado e poderá abrir precedente perigoso. O período de calamidade pública talvez não seja tão curto e outros casos futuros não tão raros.

O BC não tem autonomia formal, deixando a instituiçã­o vulnerável a pressões

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