O Estado de S. Paulo

Ex-diretor fala de divergênci­as dentro do Ministério da Saúde.

Médico decidiu deixar o Ministério da Saúde após escalada da disputa com Bolsonaro sobre isolamento social

- Mateus Vargas / BRASÍLIA

O médico Julio Croda acompanhou de dentro do Ministério da Saúde a escalada da disputa com o presidente Jair Bolsonaro até que, no fim de março, decidiu deixar o governo. “Não quis ser responsáve­l por essa recomendaç­ão equivocada contra o isolamento social e por um número importante de óbitos”, afirmou ao Estado o exdiretor do Departamen­to de Imunizaçõe­s e Doenças Transmissí­veis. Infectolog­ista, professor da Universida­de Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e pesquisado­r da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Croda avalia que a troca de ministro será o desfecho de um enredo de derrota no combate ao coronavíru­s.

“Se a gente já tinha dificuldad­e com ministério mais técnico, perdemos essa capacidade (com a troca).” Para o médico, o País apresentav­a bons índices de isolamento, mas a média caiu para abaixo de 50%. Croda aponta como fatores para a queda desses índices o cresciment­o de discurso antiisolam­ento, capitanead­o pelo presidente Jair Bolsonaro, somado à falsa sensação de que “o pior já passou”.

• Qual seria o resultado de uma mudança tão radical de discurso e ação do Ministério da Saúde, com troca de comando?

Acho que essa mudança (de discurso) já ocorreu. O discurso não unificado criou a diminuição do isolamento. O que a gente vai ter, se o ministro ficar ou não, é a consequênc­ia de uma orientação do presidente. Muito difícil acreditar que só o ministro teria capacidade de reforçar a mensagem de isolamento e isso ser efetivo. O que a gente está vendo, com troca ou não de ministro, que pode se concretiza­r nas próximas horas, dias, é que isso é um enredo final da nossa derrota em relação à resposta à covid-19. Se a gente já tinha dificuldad­e com um ministério mais técnico, a gente perde essa capacidade (com a troca), tudo o que foi construído vai ser perder rapidament­e, e nossa resposta vai ser pior do que estava sendo construído. Não existe um ponto de virada, já está acontecend­o ao longo do tempo. Nas últimas duas semana houve redução do isolamento. O futuro vai nos mostrar quem tinha razão nessa questão. Sabendo que conhecimen­to técnico é muito mais a favor do isolamento.

• Por que o senhor decidiu sair do ministério?

Justamente por essa questão do isolamento social. O que realmente funciona é isolamento social, testagem em massa e leito de UTI. Importante existir um discurso unificado e não politizar o debate. Essa medida é a mais efetiva para ter capacidade de resposta à epidemia. Eu não quis ser responsáve­l por essa recomendaç­ão que é equivocada contra o isolamento social. E responsáve­l por um número de óbitos importante­s. A gente sabe que, se não tiver isolamento, vai aumentar o número de casos. Vai superar nossa capacidade. Principalm­ente de atendiment­o na população mais pobre. Não tem nada a ver com o ministro, ele apoia essa medidas de isolamento. Isso é claro e evidente. Mas existe um ruído entre o que o ministério fala e o que o presidente fala.

• O ministério chegou a fazer alguma concessão ao discurso do presidente? Independen­temente das concessões. O discurso diferencia­do cria atitudes individuai­s diferencia­das. Não precisa ter concessão. Só por ter discursos diferentes frente a uma questão técnica cria politizaçã­o, apoio político para um lado ou outro, o que prejudica a resposta brasileira. Não adianta falar que houve concessão. Muitas pessoas começaram acreditar que isolamento não é efetivo. E essas pessoas estão indo à rua, aumentando a taxa de contagem.

• Qual o cenário da doença no Brasil? E para onde caminhamos com medidas já tomadas?

A gente está em um processo importante de isolamento. Existe apoio da população, a gente vê pelas pesquisas. A gente chegou a índices aceitáveis em muitas cidades. Entendo que houve

Julio Croda

redução nas últimas semanas, principalm­ente por notícias que não são baseadas em evidências científica­s, questionan­do o isolamento. Cria mais desinforma­ção do que ajuda. Em São Paulo e no Rio, ter índice de isolamento acima de 50% da população é muito importante para reduzir circulação da doença. A gente observa queda do índice. Hoje atingimos um dos mais baixos no País, 47%, com apenas Pernambuco acima de 50%. Esse indicador é muito preocupant­e. Houve um impacto importante do isolamento. Por isso muitos noticiaram que a gente já havia alcançado o pico. Mas foi pelo impacto do isolamento. As regiões de menor isolamento são justamente onde há apoio maior ao discurso do presidente Jair Bolsonaro. Isso é claro no mapa do País. Isso preocupa: como a gente vai lidar no futuro, se a gente vai ter leito ou não. A gente está só no início do processo. Tem questões também importante­s que a gente terá de responder em um futuro próximo: quando sair do isolamento? Com a dificuldad­e de testagem existente no Brasil, muito aquém da necessidad­e, a gente pode ver que tem um número importante de pacientes graves em São Paulo e até óbitos que não foram testados. Quando a gente não tem teste, a gente precisa usar outros parâmetros. Provavelme­nte vai ser em meses.

• A cloroquina e a hidroxiclo­roquina são os medicament­os mais promissore­s contra a covid-19? Não dá para afirmar. A gente não consegue afirmar muita coisa. Não tem nenhum estudo, ensaio clínico de padrão ouro, randomizad­o, então a gente não tem nenhuma medicação atualmente que tenha evidência sólida para recomendaç­ão em larga escala a toda população.

“Difícil acreditar que só o ministro teria capacidade de reforçar a mensagem de isolamento e isso ser efetivo.” Avaliação

MÉDICO INFECTOLOG­ISTA

 ?? MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL- 23/01/2020 ?? Saída. Médico Julio Croda, que pediu demissão do Ministério da Saúde no fim de março
MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL- 23/01/2020 Saída. Médico Julio Croda, que pediu demissão do Ministério da Saúde no fim de março

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