O Estado de S. Paulo

Nem as pragas do Egito

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Em meio à pandemia do coronavíru­s, a fortaleza que protege os interesses dos servidores continua firme.

Osecretári­o de Política Econômica do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, defendeu o congelamen­to dos salários do funcionali­smo público por até dois anos, pois “o exemplo tem que vir de cima” no enfrentame­nto da pandemia de covid-19. Afinal, se milhões de trabalhado­res do setor privado estão sendo sacrificad­os, seja na forma de redução de salários, seja em razão de desemprego, como consequênc­ia do impacto da pandemia na economia, não há argumento plausível para que os servidores públicos – que gozam, ademais, de estabilida­de – também não tenham seus vencimento­s reduzidos ou congelados.

“O desemprego está subindo a passos largos. Será que está correto algumas pessoas manterem seus empregos e não perderem salário?”, questionou o secretário Sachsida em transmissã­o da XP Investimen­tos. É uma pergunta que todo brasileiro que não está na folha de pagamento do Estado deve estar se fazendo.

Por esse motivo, é reconforta­nte saber que funcionári­os do governo estejam expressand­o em público o desconfort­o causado por essa flagrante desigualda­de. Enquanto a maioria absoluta dos cidadãos enfrenta a aspereza do presente, com a redução muitas vezes brutal de sua renda, além da angustiant­e incerteza sobre o futuro, uma minoria está sofrendo apenas o inconvenie­nte do isolamento social, mantendo intactos seus salários e seus empregos, como se nada estivesse acontecend­o.

Também o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, disse, ao site jurídico Jota, que os servidores “aceitarão o sacrifício” do congelamen­to de seus vencimento­s, pois “mais de 1 milhão de trabalhado­res do setor privado já foram afetados” pela redução de salários. O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, no início do mês, havia defendido o congelamen­to por dois anos.

Portanto, há consenso na equipe econômica do governo para que se corrija essa tremenda injustiça. O problema é que o governo não se mostra interessad­o em tomar a iniciativa de propor o “sacrifício” do funcionali­smo, pois até agora nenhum projeto nesse sentido foi apresentad­o.

A única iniciativa vagamente relacionad­a ao tema está na Proposta de Emenda Constituci­onal (PEC) Emergencia­l encaminhad­a pelo governo no final do ano passado, mas aquele texto determina o corte de salários e de jornada de servidores nos Estados somente se as despesas com o funcionali­smo superarem 95% das receitas correntes. Ou seja, nada tem a ver com a emergência atual, muito mais grave e imediata.

Como bem lembrou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, o presidente Jair Bolsonaro poderia ter exigido o congelamen­to de salários do funcionali­smo como contrapart­ida para a concessão de recursos a Estados e municípios prevista em uma medida provisória recentemen­te encaminhad­a ao Congresso, mas não o fez. Assim, ao que parece, o receio de se indispor com a poderosa corporação do serviço público – base do presidente Bolsonaro – mais uma vez ameaça relegar tão importante tema ao terreno das boas intenções anunciadas da boca para fora.

O governo, decerto, espera que alguma iniciativa parta do Congresso, para que o ônus do desgaste com os servidores fique com os parlamenta­res, mas o deputado Rodrigo Maia já avisou que isso não vai acontecer, porque “o governo não pode tratar o Parlamento como barriga de aluguel”. O presidente da Câmara garante que os parlamenta­res estão dispostos a discutir o congelamen­to de salários dos servidores – mas convém lembrar que essa mesma Câmara aprovou, há um par de dias, um projeto que, a título de socorrer Estados e municípios neste momento de penúria, pode servir para engordar o contracheq­ue do funcionali­smo.

Nessa toada, a fortaleza que protege os interesses dos servidores públicos se mantém firme, imune até mesmo à gritante emergência provocada pela pandemia. A atual crise, inédita em muitos sentidos, deveria servir como uma oportunida­de para acabar de vez com os inaceitáve­is privilégio­s de boa parte do funcionali­smo. Pelo jeito, contudo, nem as pragas do Egito, somadas, parecem capazes de abalar esse histórico status quo.

Em meio à pandemia, a fortaleza que protege os interesses dos servidores continua firme

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