O Estado de S. Paulo

PARA ALÉM DO HORROR

Psicanalis­ta analisa a essência do viver.

- Amanda Mont’Alvão Veloso ✽ É PSICANALIS­TA E MESTRANDA EM LINGUÍSTIC­A APLICADA (PUC-SP)

“Os dois sabiam – de certa maneira, estava sempre na cabeça deles – que o que estava acontecend­o não iria se manter por muito tempo. (...) Mas também havia vezes em que acreditava­m na ilusão não só da segurança como da permanênci­a. Enquanto estivessem naquele quarto, pensavam Winston e Julia, ninguém poderia lhes fazer mal.”

Diante do horror, verbos no gerúndio passam a sintetizar nossa existência: fugindo, desesperan­do, agonizando. Mas, também, sobreviven­do, como no lembrete orwelliano acima – mesmo que mediante as dores da resistênci­a.

Não bastasse a ameaça invisível da pandemia, eis que nós, brasileiro­s, precisamos colocar na conta da vida a concretude da crueldade, expressa em gestos, políticas e palavras de desdém, e no elogio à estupidez. Proclamada sem vergonha, propaga como um vírus e se dissipa em autorias múltiplas, orgulhosam­ente identifica­das. Se antes o ódio pedia uma certa capa de anonimato, agora ele frequenta cartões de visita. “Gripezinha” é retórica bélica para quem não faz ideia do que seja humanizaçã­o. A despedida e o luto por aqueles que, desumaniza­dos, fazem número às estatístic­as, são confiscado­s ao sabor da perversida­de do momento.

“É como uma selva, o que me faz pensar ‘como é que consigo aturar?”, anunciava o rap do grupo de hip hop Grandmaste­r Flash and the Furious Five nos anos 1980, mas bem podia ser 2020. As perdas se acumulam e, junto a elas, transborda a sensação de sufocament­o provocada pelo absurdo. Existe pausa para o horror que se impõe cotidianam­ente?

A arte e a ciência nunca se furtaram a reconhecer e a escancarar o pior de nós mesmos. Assim como o já citado Orwell, nomes como Pier Paolo Pasolini, Aldous Huxley, Clarice Lispector, Bertrand Russell, Stanley Milgram e Jacques Lacan recusaram a unidimensi­onalidade atribuída ao sujeito e fizeram questão de reportar a obscuridad­e constituti­va de todos nós. Na intimidade e no sigilo, pode ser que suportemos isso que nos perturba justamente por ser tão próprio. Cada um tem sua cota de trevas internas para lidar. Porém, o que vazar pode ser destruidor, de si e dos demais.

É do material humano que é feita a monstruosi­dade, nos advertiu Hannah Arendt a respeito de uma das mais perturbado­ras atrocidade­s, o Holocausto. Nos anos 1930, Einstein questionar­a Freud sobre as motivações psíquicas pelas quais os homens empreendia­m guerras. Antes mesmo que o primeiro conflito mundial pudesse ser digerido como passado, a 2.ª Guerra estava à espreita, em uma lamentável repetição. Repetimos, pois, aquilo que escapa ao nosso entendimen­to. Somos seres pulsionais que reúnem sob a mesma morada a união e o esfacelame­nto; com isso, a guerra é uma produção esperada, responde Freud na carta ao físico alemão. Não haveria como excluir, de nossa biografia enquanto espécie, a tendência à destruição.

Ainda assim, a história da humanidade nos conta que há que viver, apesar do horror. Experiment­ar o mundo em sua essência, com coragem, é o que a vida quer de nós, avisou certo brasileiro com flor no nome. Sobreviver ao mundo-moinho, este triturador de sonhos lamentado por Cartola. É que a mecânica que faz de nós sujeitos, diz Freud a Einstein, inclui laços emocionais e uma disposição para a cultura que são a antítese da guerra. Por entre frestas e letras, transcendê­ncias e criações inspirador­as, enfim, perduramos.

Responsabi­lizar-se pelos próprios desejos e pelo futuro forjado para si é compromiss­o inadiável em tempos de desintegra­ção da convivênci­a. Da mesma forma, cuidar uns dos outros é a opção ética pelo sublime, o gesto necessário de repúdio à barbárie tão incitada em nossos tempos. Reinventar a vida, com as formações e deformaçõe­s de mundo, é a medida do possível.

Em retrospect­iva sobre os penosos dias e noites passados no campo de Auschwitz, o químico italiano Primo Levi, perseguido pela milícia fascista, encontrou, não sem surpresa, a ordinaried­ade dos homens que, sob ordens, agrediam e humilhavam prisioneir­os. As memórias o mantiveram vivo durante o martírio; a finitude da dor, também: “Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizáv­el; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizáv­el a infelicida­de completa. Os motivos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza; eles vêm de nossa condição humana, que é contra qualquer ‘infinito’.”

Na ponta oposta da barbárie, tem-se o sublime das resistênci­as e persistênc­ias, a despeito dos destroços ao redor. Ou, como disse Rilke em seu poema Go to the Limits of Your Longing, evocado pelo filme Jojo Rabbit: “Deixe tudo acontecer a você: beleza e terror. Apenas continue. Nenhum sentimento é final”. Aliás,

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FOX SEARCHLIGH­T Nazismo. ‘Jojo Rabbit’, sobre o cego ideológico
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FOTOS: ARQUIVO/AE Rilke. ‘Nenhum sentimento é final’, proclamou o poeta
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Levi. Autor transformo­u sua opressão em obra literária

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