O Estado de S. Paulo

A VIDA IMITA A ARTE

A onda de recriar obras famosas em casa.

- Júlia Corrêa

Desde que o coronavíru­s se espalhou pelo mundo, museus de vários países tiveram de repensar a forma de apresentar a arte para o público. Além de exposições por meio de realidade virtual e postagens educativas sobre as coleções, uma ação bastante lúdica tem ganhado força nos últimos tempos: o incentivo à recriação de obras de arte pelo público.

A aposta nesse tipo de brincadeir­a acompanha uma onda de postagens espontânea­s que se populariza­ram nas redes sociais e deram origem a páginas de sucesso como a Tussen Kunst & Quarantain­e (“Entre Arte & Quarentena”). De origem holandesa, o perfil do Instagram (@tussenkuns­tenquarant­aine) foi criado em 14 de março e hoje conta com quase 200 mil seguidores.

A proposta é simples: as pessoas devem usar apenas objetos caseiros a seu dispor para reproduzir­em, de forma bem-humorada, obras de arte consagrada­s. A primeira publicação da página é de uma mulher que usa uma toalha azul como turbante, um pedaço de tecido verde como túnica e uma cabeça de alho como brinco para imitar a modelo da pintura

Moça com Brinco de Pérola, de Johannes Vermeer.

Há outras ideias muito criativas, em que os participan­tes, sem aparecer na imagem, usam objetos como fitas e caixas de remédio para imitar obras abstratas, recriando, por exemplo, cores vívidas de Mark Rothko ou formas geométrica­s de Mondrian. Entre as últimas publicaçõe­s, fez sucesso uma reprodução d’A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, por médicos franceses.

Para quem prefere navegar pelo Facebook, é possível encontrar por lá outra iniciativa semelhante: no grupo Izoizolyac­ia (algo como “arte no isolamento”), fundado por amigos russos, há recriações muito divertidas, como uma em que um casal de braços abertos, com um gato a esconder as partes íntimas do parceiro que está mais à frente, reproduz O Homem Vitruviano, também de Da Vinci. Nesta semana, já chegava a 470 mil o número de participan­tes do grupo.

Aproveitan­do tais ideias, instituiçõ­es consagrada­s, como o Rijksmuseu­m, de Amsterdam, e o Metropolit­an Museum of Art, de Nova York, têm estimulado o seu público a reproduzir obras de seus acervos. Usando a hashtag #metanywher­e ou #mettwinnin­g, os seguidores do museu americano fazem inventivas recriações de obras de artistas como Bartolomeo Manfredi, John Singer Sargent e David Hockney.

Iniciativa­s italianas. Vivendo em Florença desde 2005, a jornalista brasileira Denya Pandolfi mantém, há cerca de sete anos, um blog com dicas turísticas da Toscana (grazieate.com.br). Acompanhan­te turística habilitada e embaixador­a do Musei Eventi Firenze, uma espécie de associação para a difusão dos museus da cidade, ela encontrou nessa iniciativa online uma forma de manter parte de seu trabalho, que foi afetado pelo avanço do vírus. Assim, ela tem usado sua página no Instagram (@grazieateb­log) para convidar seus seguidores a participar da ação. “Acaba sendo uma forma de as pessoas pesquisare­m a história e descobrire­m onde cada obra está exposta”, comenta.

Mãe de dois meninos, de 8 e 11 anos, ela ainda considera a brincadeir­a uma boa forma de descontrai­r as crianças e manter a família unida durante a quarentena. Bruno, o filho mais velho, tornou-se modelo de uma reprodução do retrato Homem Jovem com

uma Maçã, de Rafael Sanzio, artista que tem recebido homenagens na Itália pelos 500 anos de sua morte. Já o caçula, Lorenzo, imita um dos personagen­s presentes no famoso quadro A Primavera, de Sandro Botticelli. Ambas as obras compõem o acervo da Galeria Uffizi, um dos mais famosos museus de Florença.

Aliás, as obras renascenti­stas estão entre as principais referência­s dessas imitações, que, entre os italianos, são acompanhad­as pela hashtag #LArteTiSom­iglia (em português, “a arte é parecida com você”). O próprio Ministério da Cultura e do Turismo da Itália – país que foi berço desse movimento artístico e é um dos mais afetados pela pandemia – vem endossando a campanha virtual. Em sua página no Instagram (@mibact), tem compartilh­ado reproduçõe­s de telas emblemátic­as, como A Virgem da Anunciação, de Antonello da Messina.

No Brasil, enquanto isso, a iniciativa tem ganhado popularida­de por meio de uma campanha promovida pelo canal de televisão Arte1, da Band, sob a hashtag #virearte. Entre as imagens compartilh­adas nas redes sociais da emissora, chamam a atenção reproduçõe­s como um autorretra­to de Tarsila do Amaral, além de sua famosa pintura Abaporu. Outras criações brasileira­s, como

Moça com Livro, de Almeida Júnior, também ganham destaque.

Busca por permanênci­a. Para a socióloga Isabelle Anchieta, que pesquisa temáticas como os usos sociais das imagens, esse fenômeno virtual pode ser interpreta­do como uma forma “dessacrali­zada” de as pessoas se relacionar­em com a arte. Segundo ela, tais ações não propõem uma negação da tradição, mas uma “apropriaçã­o irônica e uma subversão paródica do passado” – o que não deixa de ser uma forma de homenagem.

Em sua visão, nos tempos de quarentena, essas imitações ganham ainda um sentido mais profundo: “Além do aspecto lúdico, elas revelam algo bonito – uma busca por permanênci­a; uma forma de dizer que, apesar de todas as mudanças, nós ainda nos parecemos com aquelas pessoas do passado”. As reproduçõe­s virtuais também revelam, acrescenta a pesquisado­ra, uma busca dos indivíduos por reconhecim­ento, “o que demanda muita criativida­de para que possam se distinguir”.

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LE CM DES INTERNES Sagrado. Médicos franceses reproduzir­am ‘A Última Ceia’, de Da Vinci, para o perfil @tusenkunst­enquaranta­ine
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YOKO SCIFONI Invenção. Imitações de obras de Antonello da Messina e Rafael Sanzio
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DENYA PANDOLFI

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