O Estado de S. Paulo

O MESTRE DA PROSA AFIADA

Morre de enfarte aos 94 anos Rubem Fonseca, um dos maiores escritores brasileiro­s, que inovou a literatura nacional com o estilo enxuto e direto de seus contos e romances.

- / ANDRÉ CÁCERES, GUILHERME SOBOTA, MARIA FERNANDA RODRIGUES E UBIRATAN BRASIL

Um dos principais escritores da literatura brasileira, dono de um estilo seco, direto, e capaz de construir uma narrativa eficiente e afiada, Rubem Fonseca morreu na quarta-feira, 15, aos 94 anos. Ele foi vítima de um enfarte, em seu apartament­o no Rio de Janeiro. Ele chegou a ser levado para o Hospital Samaritano Botafogo, mas já chegou sem vida.

Considerad­o um revolucion­ário do conto, Fonseca desenvolvi­a sua narrativa com fluidez precisa, adequando formas de expressão aos tipos selecionad­os para fazer parte de seus contos. E que tipos – personagen­s antológico­s que moldaram gerações ao expor as feridas de uma sociedade cada vez mais corrompida pelas hipocrisia­s cotidianas.

Dono de uma narrativa ácida e bem-humorada, situada no Rio de Janeiro ao largo dos últimos 80 anos, Fonseca não tinha receio de empregar no texto elementos de extrema violência – componente utilizado como mecanismo desencadea­dor, em sua literatura, de todas as relações humanas, fossem elas humorístic­as, eróticas, reflexivas ou trágicas.

Sua estreia na literatura aconteceu em 1963, com os contos de

Os Prisioneir­os. Gumercindo Rocha Dórea, editor da GRD, que descobriu Fonseca e o publicou pela primeira vez, contou em uma entrevista ao Estado que, na época, como o escritor trabalhava na Light, não queria tornar públicos seus escritos. Quem passou os originais a Dórea, sem que Fonseca soubesse, foi sua secretária. Conhecido por ser extremamen­te discreto e pouco afeito a aparições públicas, o autor relutou a permitir que o editor lançasse Os Prisioneir­os, dando início assim à sua carreira literária.

A chegada de Rubem Fonseca ao cenário da literatura brasileira introduziu o gênero policial na época contemporâ­nea. Em seguida, vieram A Coleira do Cão

(1965), Lúcia McCartney (1969), Feliz Ano Novo (1975), O Cobrador (1979) e Agosto (1990), para ficar nos mais notáveis. O Cobrador e Feliz Ano Novo, aliás, foram censurados pela ditadura militar. O conto que dá nome ao segundo livro faz uma alusão a dois extremos de vida que propiciam um choque e, portanto, a violência, apresentan­do-a como componente subversivo em resposta ao sem-número de leis que, inflexívei­s, tornariam impossívei­s as relações humanas.

A desconfian­ça sempre rondou os personagen­s de Fonseca: o advogado não confia nos clientes, o juiz não acredita em nenhum dos dois, as amantes desconfiam do advogado que, por sua vez, aceita as evidências contra elas. Não é de se estranhar, portanto, que o crime seja o resultado natural da impossibil­idade de convivênci­a entre eles.

Entre diversos outros prêmios, Fonseca venceu cinco vezes o Jabuti de contos. Na categoria romance, ganhou apenas uma vez, com A Grande Arte

(1983), mas um de seus trabalhos mais reconhecid­os é Agosto, narrativa histórica que conta os eventos que culminaram no suicídio do ex-presidente do Getúlio Vargas em agosto de 1954.

Fonseca inspirou também a obra de outros autores como Patrícia Melo, Joaquim Nogueira, Tony Bellotto e, principalm­ente, Luiz Alfredo Garcia-Roza, um dos grandes nomes da atualidade. Em 2016, seu filho, o diretor José Henrique Fonseca, adaptou

Lúcia McCartney para uma minissérie da HBO, e o personagem Mandrake também ganhou uma versão em vídeo na emissora.

“É um conto muito importante para a literatura brasileira. Quebrou uma série de paradigmas”, disse José Henrique ao

Estado, na ocasião do lançamento da série. “Não me lembrava, especifica­mente, da riqueza da escrita. Rubem trabalha muito com elipses e eu fui viajando nelas, pensando que seria muito cinematogr­áfico transforma­r em imagem e som essa narrativa inquietant­e”, resumiu, numa frase que poderia se aplicar sem injustiça à obra completa de Rubem.

O escritor também era avesso a entrevista­s e fotos, o que lhe garantia tranquilid­ade para passear diariament­e pela praia de Copacabana sem ser incomodado. Uma de suas raras aparições públicas aconteceu em 2015, na Academia Brasileira de Letras, onde recebeu o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra. “Sou um homem idiossincr­ático e idiossincr­asias não se explicam”, disse, na ocasião. Em um discurso de pouco mais de 10 minutos, comentou sobre sua relação com a literatura, amante que foi de obras clássicas e modernas, além de romances policiais. Dispensou o púlpito e falou sobre o pequeno palco, agradecend­o a presença de todos. Na saída, fez selfies.

“Tenho todos os livros dele e continuare­i a lê-lo, como sempre o leio quando preciso me sentir inquieto para escrever. Escritores morrem quando deixam de ter leitores” José Eduardo Agualusa ESCRITOR “Na descrição da cidade do Rio de Janeiro, onde ambientava seus livros, no meu entender, tem importânci­a tão grande quanto Machado de Assis. Um Machado, claro, dos tempos modernos” Sérgio Sant’Anna ESCRITOR “Seus contos e romances traduzem à perfeição a atmosfera asfixiante do nosso País falhado, enfermo e em processo de implosão” André de Leones ESCRITOR “Com seus contos e romances, em que predominam a brutalidad­e sarcástica e a violência urbana, num estilo afiado à faca, Fonseca flertava com o policial, elevando o gênero a um novo patamar” Raphael Montes ESCRITOR “Aprendi muito com ele. Rubem Fonseca era meu melhor amigo. Meu coração está partido” Patricia Melo ESCRITORA

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DAVID DE LA PAZ / EFE – 29/11/2003
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ZECA FONSECA – 5/11/2009 Discreto. Ele não gostava de fotos

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