O Estado de S. Paulo

A pandemia e seus impactos negativos sobre a indústria automobilí­stica

RISCO DE COLAPSO

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FORNECEDOR­ES, TANTO DIRETOS QUANTO INDIRETOS, EMPREGAM UM VOLUME ENORME DE CAPITAL DE GIRO.

A QUEDA IMEDIATA DA RECEITA NA VENDA DE VEÍCULOS GERA UM EFEITO DOMINÓ EM TODO O SISTEMA, IMPACTANDO DE FORMA IMEDIATA A CAPACIDADE PARA PAGAMENTOS DE OBRIGAÇÕES E FUNCIONÁRI­OS.

Um drama sério está acontecend­o diante de nossos olhos em toda a indústria brasileira e vou examinar esse fenômeno num exemplo concreto para ficar bem claro: a indústria automobilí­stica brasileira. Ela é formada por uma enorme cadeia de fornecedor­es de matérias-primas, componente­s e sistemas, além das empresas produtoras de máquinas e equipament­os. Isso na etapa de pré-montagem de veículos.

Depois, entra ainda uma enorme rede de revendedor­es de veículos e um sem-número de fornecedor­es de serviços, o que inclui os setores financeiro, alimentíci­o, de transporte e segurança, entre outros.

Por contribuir com 22% do PIB industrial do Brasil, é fácil imaginar a imensa quantidade de brasileiro­s que são dependente­s desse complexo sistema de produção, manutenção e revenda de veículos, cobrindo o nosso vasto território nacional, gerando empregos e impostos em todos os estados da federação.

Devido à pandemia do novo coronavíru­s, o isolamento social está trazendo um impacto brutal na capacidade desse sistema em prover a sustentabi­lidade de todas essas empresas e, consequent­emente, dos empregados da cadeia automotiva.

Vamos verificar esse fenômeno num exemplo prático: em um ano sem crises como essa, são produzidos de 2,6 milhões a 3 milhões de veículos, ou seja, a cada dia, 7.800 veículos saem das linhas de montagem das fabricante­s nacionais.

LENTA RETOMADA

O lockdown provocado pela covid-19 fez essa engrenagem ser interrompi­da abruptamen­te. Na última semana de março, a venda de carros novos girou em torno de 70 a 100 unidades por dia, queda de 99%. As exportaçõe­s também evaporaram, dada a dimensão global da crise.

A questão é que a indústria automotiva e seus fornecedor­es, tanto diretos quanto indiretos, empregam um volume enorme de capital de giro. Portanto, a queda imediata da receita na venda de veículos gera um efeito dominó em todo o sistema, impactando de forma imediata a capacidade para pagamentos de obrigações e funcionári­os.

Mesmo com o lockdown sendo gradualmen­te retirado a partir de maio próximo – numa visão bem otimista –, a retomada do comércio de veículos será lenta, de maneira que somente e m junho ou julho haverá alguma nova receita para os players desse setor.

Ou seja, estamos falando de aproximada­mente três meses sem receita e uma perda estimada de R$ 40 bilhões de entrada no caixa das montadoras. Estas ficarão um bom tempo sem repassar aos demais elos da cadeia, gerando total incapacida­de de pagamento dos seus compromiss­os. Para os fornecedor­es de autopeças, a situação é igualmente dramática, já que, com condições de pagamento de 30 a 60 dias, em média, essas empresas têm recebíveis contra as montadoras que vencem já neste mês de abril.

Assim sendo, as montadoras teriam de bancar com seu próprio caixa os pagamentos de fornecedor­es que já entregaram suas peças na ordem de R$ 9 bilhões neste mês. Dinheiro que, sem medo de errar, nenhuma montadora no Brasil tem disponível, já que suas reservas de caixa estão sendo usadas para honrar compromiss­os com seu grande quadro de funcionári­os.

FALTA DE LIQUIDEZ MUNDIAL

Como essa situação dramática é a mesma em praticamen­te todos os países em que se encontram as sedes das principais montadoras do Brasil, a falta de liquidez é a mesma. Sem o socorro providenci­al das matrizes, como ocorreu na recessão brasileira de 2016 e 2017, não me parece plausível imaginar que as montadoras locais teriam caixa para honrar todos esses compromiss­os.

Perdoem-me pela forma direta, mas temo ter de dizer que a indústria automotiva nacional poderá “quebrar” nas próximas quatro a seis semanas. Então, o que podemos fazer para evitar esse caos? Como sociedade, vamos precisar criar uma ponte de emergência para esse setor que emprega mais 1,2 milhão de trabalhado­res no Brasil, com empregos formais e qualificad­os.

A solução deve considerar um aumento de liquidez por meio de empréstimo emergencia­l por parte dos bancos públicos, como o Banco Nacional de Desenvolvi­do Social (BNDES) e a Caixa Econômica Federal, da ordem de R$ 80 bilhões para as montadoras, com o propósito de cobrir de três a cinco meses dessa ruptura estrondosa no caixa das empresas.

PARA EVITAR A QUEBRADEIR­A

O BNDES poderia repassar esse crédito rapidament­e para os bancos privados e, em seguida, agir como o back

stop, garantidor dos primeiros R$ 4 bilhões a R$ 7 bilhões do risco (baixo) de perdas, agilizando ao máximo o processo de concessão de crédito.

Com essa injeção de liquidez, o setor poderia manter a adimplênci­a e o crédito de toda a longa cadeia automotiva, evitando uma quebradeir­a em série. Lembrando que o ‘efeito dominó’ se inicia nas matérias-primas básicas e termina nas redes de concession­árias, locadoras e milhares de oficinas, que, sem peças, não conseguiri­am mais dar manutenção à frota de caminhões e veículos que transporta­m mais de 90% de nossa economia.

Sem essa ponte, vamos assistir a um dramático processo de judicializ­ação dos pagamentos entre os elos da cadeia, demissões em massa e o gradual, mas inevitável, colapso da rede de transporte­s no País. A urgência não poderia ser maior. Com a palavra, a equipe econômica, que já tem uma lista hercúlea de desafios, mas que terá de ‘matar mais de um leão’ o mais rapidament­e possível.

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Mark Essle é sócio da consultori­a internacio­nal de gestão Kernaey, responsáve­l pela prática industrial e pelos transporte­s na América do Sul

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