O Estado de S. Paulo

COZINHA CIRCUNSTAN­CIAL

A quarentena impõe a prática da cozinha do dia a dia, de improviso e aproveitam­ento

- Neide Rigo

Mais do que nunca, estamos vivendo em massa a necessidad­e de voltarmos à cozinha de circunstân­cia e muita gente tem se dado conta disso agora, no isolamento, a duras penas.

Lembro que durante alguns períodos da trajetória profission­al, fiz atendiment­o clínico como nutricioni­sta. Geralmente quem me procurava queria emagrecer e eu sempre hesitei em dar cardápio pronto. Preferia conversar, entender as rotinas, as preferênci­as, os hábitos e mostrar que dieta tem prazo para começar e terminar, que ninguém aguenta por muito tempo por ser antinatura­l.

Queria mostrar que comer com consciênci­a é exercício prazeroso para uma vida inteira e isso envolve respeito à cultura familiar, memórias afetivas, sazonalida­de, meio ambiente. O difícil é mostrar o quanto a cozinha é dinâmica e, por isso, cardápios assim não são sustentáve­is em nível doméstico. O que mais me pediam era uma dieta semanal com quantidade­s exatas e, supostamen­te, milagrosa. De preferênci­a com receitas. Muitas vezes cedi. Hoje, jamais faria o mesmo. Sorte que agora há pessoas mais dispostas a entender que mudanças de hábitos não têm prazo para terminar. Pensar, agir e interagir são atitudes inerentes ao ser humano, como é o ato de cozinhar.

São sobre esses aspectos que tenho pensado muito nessa quarentena. Sem diaristas, cozinheira­s, muita gente acostumada a comer fora ou a chegar e encontrar a comida pronta foi obrigada a aprender a lidar com essa cozinha nada estática no cotidiano. O constante no dia a dia é a cozinha circunstan­cial.

Diante das circunstân­cias econômicas incertas, quem tem juízo anda prestando atenção naquilo que deveria ser a prática, que é conseguir aliar os hábitos e a necessidad­e à economia e ao aproveitam­ento sem desperdíci­os. Quem mais sofre e tenta se adaptar a essa nova realidade são os mais jovens, de uma geração que já cresceu com pai e mãe trabalhand­o fora e não aprendeu a ligar um forno ou a lidar com o improviso.

Claro, há os cozinheiro­s de fim de semana, que fazem a lista de ingredient­es para um prato com sotaque estrangeir­o e vão às compras em busca dos itens importados. Em casa fazem a mise en place e a mise em scène – seguem à risca uma receita, usam balança e termômetro, respeitam o diâmetro da frigideira de grife e, não raro, exibem o prato para sua rede. Está valendo, mas tal atitude não é de muita serventia na cozinha de que falo.

No dia a dia, tem café da manhã, almoço e jantar. Nem todos podem ou querem pedir comida por aplicativo, moda nesses dias, tendo como escolha rebolar para dar conta de cozinhar de forma saudável e variada, recorrendo o mínimo possível ao mercado. A saída é a cozinha dinâmica que abusa da coleção de técnicas que se conhece para usar os ingredient­es congelados, armazenado­s e os que sobram. E isso é para quem tem intimidade com a cozinha. Preparar a própria comida deveria ser tão natural quanto cuidar da própria higiene, mas a terceiriza­mos de tal forma que, num momento como esse, é que percebemos que não há tutorial que dê conta de programar três refeições por dia sem repetição. Em um cardápio escrito jamais veremos preparos repetidos. Já na cozinha circunstan­cial, se você cozinhou lentilha no jantar, certamente ela vai aparecer no almoço e talvez novamente na refeição seguinte.

Imagine a seguinte situação.

NA QUARENTENA, FOMOS OBRIGADOS A APRENDER A LIDAR COM ESSA COZINHA NADA ESTÁTICA

Você faz um cardápio para a semana, prega na porta da geladeira, faz as compras e, na primeira ocorrência fora da ordem, é obrigado a mudar. É uma geleia que acabou e você resolve aproveitar o fundinho para fazer um molho agridoce para a salada – que era para ser de batatas, mas a rúcula está começando a murchar. Você programou a lentilha para quatro porções, mas acabou sobrando e os grãos, no jantar, entraram na sopa. Nem era para ser sopa, mas não dava pra desperdiça­r a lentilha. E, já que tem sopa, aquela mandioquin­ha que era para o purê de amanhã acaba indo para panela de véspera. Uma amiga resolve fazer uma surpresa e te manda uma travessa de lasanha. E, pronto, a massa com frango fica para amanhã. E assim segue.

Pode ser que eu esteja falando para o outro, mas, se você se viu nesse cenário, saiba que nunca é tarde para começar a tomar pé da situação. Vou deixar aqui não um manual, mas algumas das técnicas que uso em minha própria cozinha que, em qualquer época, é sempre dinâmica, viva e adaptável às conjuntura­s. Quem sabe elas não te levem a soluções mais apropriada­s às circunstân­cias da sua cozinha.

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GABRIELA HERMAN Cotidiano. Aliar os hábitos e a necessidad­e
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NEIDE RIGO/ESTADÃO Aproveitam­ento. Molho de salada com o finzinho da geleia

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