COZINHA CIRCUNSTANCIAL
A quarentena impõe a prática da cozinha do dia a dia, de improviso e aproveitamento
Mais do que nunca, estamos vivendo em massa a necessidade de voltarmos à cozinha de circunstância e muita gente tem se dado conta disso agora, no isolamento, a duras penas.
Lembro que durante alguns períodos da trajetória profissional, fiz atendimento clínico como nutricionista. Geralmente quem me procurava queria emagrecer e eu sempre hesitei em dar cardápio pronto. Preferia conversar, entender as rotinas, as preferências, os hábitos e mostrar que dieta tem prazo para começar e terminar, que ninguém aguenta por muito tempo por ser antinatural.
Queria mostrar que comer com consciência é exercício prazeroso para uma vida inteira e isso envolve respeito à cultura familiar, memórias afetivas, sazonalidade, meio ambiente. O difícil é mostrar o quanto a cozinha é dinâmica e, por isso, cardápios assim não são sustentáveis em nível doméstico. O que mais me pediam era uma dieta semanal com quantidades exatas e, supostamente, milagrosa. De preferência com receitas. Muitas vezes cedi. Hoje, jamais faria o mesmo. Sorte que agora há pessoas mais dispostas a entender que mudanças de hábitos não têm prazo para terminar. Pensar, agir e interagir são atitudes inerentes ao ser humano, como é o ato de cozinhar.
São sobre esses aspectos que tenho pensado muito nessa quarentena. Sem diaristas, cozinheiras, muita gente acostumada a comer fora ou a chegar e encontrar a comida pronta foi obrigada a aprender a lidar com essa cozinha nada estática no cotidiano. O constante no dia a dia é a cozinha circunstancial.
Diante das circunstâncias econômicas incertas, quem tem juízo anda prestando atenção naquilo que deveria ser a prática, que é conseguir aliar os hábitos e a necessidade à economia e ao aproveitamento sem desperdícios. Quem mais sofre e tenta se adaptar a essa nova realidade são os mais jovens, de uma geração que já cresceu com pai e mãe trabalhando fora e não aprendeu a ligar um forno ou a lidar com o improviso.
Claro, há os cozinheiros de fim de semana, que fazem a lista de ingredientes para um prato com sotaque estrangeiro e vão às compras em busca dos itens importados. Em casa fazem a mise en place e a mise em scène – seguem à risca uma receita, usam balança e termômetro, respeitam o diâmetro da frigideira de grife e, não raro, exibem o prato para sua rede. Está valendo, mas tal atitude não é de muita serventia na cozinha de que falo.
No dia a dia, tem café da manhã, almoço e jantar. Nem todos podem ou querem pedir comida por aplicativo, moda nesses dias, tendo como escolha rebolar para dar conta de cozinhar de forma saudável e variada, recorrendo o mínimo possível ao mercado. A saída é a cozinha dinâmica que abusa da coleção de técnicas que se conhece para usar os ingredientes congelados, armazenados e os que sobram. E isso é para quem tem intimidade com a cozinha. Preparar a própria comida deveria ser tão natural quanto cuidar da própria higiene, mas a terceirizamos de tal forma que, num momento como esse, é que percebemos que não há tutorial que dê conta de programar três refeições por dia sem repetição. Em um cardápio escrito jamais veremos preparos repetidos. Já na cozinha circunstancial, se você cozinhou lentilha no jantar, certamente ela vai aparecer no almoço e talvez novamente na refeição seguinte.
Imagine a seguinte situação.
NA QUARENTENA, FOMOS OBRIGADOS A APRENDER A LIDAR COM ESSA COZINHA NADA ESTÁTICA
Você faz um cardápio para a semana, prega na porta da geladeira, faz as compras e, na primeira ocorrência fora da ordem, é obrigado a mudar. É uma geleia que acabou e você resolve aproveitar o fundinho para fazer um molho agridoce para a salada – que era para ser de batatas, mas a rúcula está começando a murchar. Você programou a lentilha para quatro porções, mas acabou sobrando e os grãos, no jantar, entraram na sopa. Nem era para ser sopa, mas não dava pra desperdiçar a lentilha. E, já que tem sopa, aquela mandioquinha que era para o purê de amanhã acaba indo para panela de véspera. Uma amiga resolve fazer uma surpresa e te manda uma travessa de lasanha. E, pronto, a massa com frango fica para amanhã. E assim segue.
Pode ser que eu esteja falando para o outro, mas, se você se viu nesse cenário, saiba que nunca é tarde para começar a tomar pé da situação. Vou deixar aqui não um manual, mas algumas das técnicas que uso em minha própria cozinha que, em qualquer época, é sempre dinâmica, viva e adaptável às conjunturas. Quem sabe elas não te levem a soluções mais apropriadas às circunstâncias da sua cozinha.