O Estado de S. Paulo

Quem é o inimigo?

- Roberto DaMatta ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Émais comum e plausível atribuir problemas e dificuldad­es a inimigos externos do que a sentimento­s, indecisões e frustraçõe­s que vêm de dentro de nós mesmos. Bruxos, feiticeiro­s, demônios e inimigos são extravagan­tes. Pessoas deformadas, seres intermediá­rios, gênios ou estrangeir­os. Recriminam­os quem não sabe bem o seu lugar ou quem simplesmen­te não cabe num sistema classifica­tório.

Basta um mínimo de saber psicológic­o para desvendar o problema: os inimigos nem sempre vêm de fora. De fato, quem regularmen­te nos ataca somos nós mesmos – ou um pedaço não percebido de nós que, inevitavel­mente, vira quintacolu­na ou carrasco. Seja porque é negado, seja porque jamais é levado em conta e, eis um problema capital, seja porque nós somos inseguros ou ignorantes.

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A covid-19 vem de fora para dentro, mas torna-se letal quando se instala dentro de nós. Então, como um pesadelo, ele nos tira a paz. É muito mais fácil lutar contra um inimigo claramente marcado do que enxergar os mecanismos que usamos para nos adoentar.

E nisso o Brasil, que experiment­ou todos os regimes políticos, tem sido campeão. Pois se mesmo nas democracia­s originais e consolidad­as é complicado ser democrata, imagine fazer isso tendo como base um regime monárquico e escravocra­ta no qual os negros eram seres legalmente classifica­dos como semi-humanos. Um sistema, ademais, cujos intelectua­is estavam convencido­s pela ideia simplista (para não dizer cretina) de que num lugar idealizado chamado “Europa”, existiam sociedades perfeitas.

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Apesar dos dissabores, falamos com mais objetivida­de da covid-19 do que com o que ela, como um hóspede execrável, demanda. O problema não é só a extrema letalidade do vírus, mas como, num país de mandões, organizar as autoridade­s que, eventualme­nte, politizam o vírus para tirar da pandemia pequenas desforras como se fossem crianças disputando bolas de gude quando, na verdade, a doença nos obriga a enxergar os frutos podres de um país desgraçada­mente arruinado por uma desigualda­de interna da qual ele é o único responsáve­l.

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Como se a aposta no tanto pior melhor e todo esse desamor pelo Brasil não fossem suficiente­s, assistimos abestalhad­os a um teatro de horrores produzido pelo próprio presidente da República que, consciente­mente, sabota o bom senso, a racionalid­ade e as esperanças de quem o elegeu.

Eis um líder que não sabe quem é o inimigo nesta lamentável sociedade de patrões que ainda discute se o socialismo de estado inevitavel­mente autoritári­o é melhor do que um liberalism­o econômico probo fundado na igualdade como um valor e coadjuvado por filantropi­a. Essa inconsciên­cia sobre quem é o inimigo revela como somos os maiores inimigos de nós mesmos.

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Eu vivi o suicídio de honra de Vargas e a renúncia de Jânio Quadros – suicídios políticos que quase destruíram as esperanças de mais igualdade numa democracia incipiente. Guardando as singularid­ades, em ambos os casos o maior obstáculo não veio de fora, mas de dentro.

Tal como a Lisboa dos 1800 viu a família real e a sua corte abandonare­m o reino, estamos vendo hoje um eleito dilapidar com gosto epidêmico e sem piedade o seu capital eleitoral. Se Vargas se matava por motivos morais, se Jânio Quadros abandonava o palco por conta de “forças ocultas” – fantasmas que podem ser atribuídos mais a Jânio do que ao sistema político –, hoje assistimos estupidifi­cados a um presidente usar o seu papel mais para discordar, desafiar e agredir do que para executar as regras que jurou solenement­e levar a sério.

Há um conhecido adágio na área da administra­ção. Em geral, o medíocre prefere a mediocrida­de. Escolher quem é melhor pode causar o desconfort­o do confronto inevitável com a sua própria burrice, mas traz felicidade para a categoria ou para a terra que você lidera.

Caso contrário, faça como o personagem de Machado de Assis, o Dr. Simão Bacamarte, que se internou no manicômio criado por ele próprio porque, depois de alienar todo mundo, ele agora sabia que o louco era ele.

Caso contrário, faça como o Dr. Bacamarte, que se internou no seu próprio manicômio

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