O Estado de S. Paulo

A terceira onda

- CARLOS GERALDO LANGONI EX-PRESIDENTE DO BC E DIRETOR DO CENTRO DE ECONOMIA MUNDIAL DA FGV

Oministro Paulo Guedes descreveu, com precisão, a crise atual como composta por duas ondas: o ciclo de expansão da pandemia e seu impacto sobre a economia. Como a trajetória do contágio depende das medidas de isolamento social, esses tsunamis acabam se sobrepondo e ocorrendo quase simultanea­mente, alimentand­o a sensação de inseguranç­a que estamos vivendo.

Isso explica a urgência das medidas compensató­rias mesmo em uma economia que convive com graves desequilíb­rios nas contas públicas. A resposta do governo (e do próprio Congresso) tem sido ousada e de escala expressiva. A prioridade é amortecer o efeito devastador do necessário lockdown sobre emprego e renda.

Nesse sentido merecem destaque: o financiame­nto subsidiado às pequenas e médias empresas, vinculado à folha de pagamento, à flexibiliz­ação dos contratos de trabalho em termos de jornada e salário com compensaçã­o parcial pelo Estado e, finalmente, voucher mensal de R$ 600 para a mão de obra informal lato senso.

São políticas inovadoras de construção de uma rede emergencia­l de proteção, amortecend­o o custo social do aumento do desemprego. Parcela significan­te dos trabalhado­res informais beneficiad­os estará estabelece­ndo, pela 1.ª vez, vínculos com o sistema financeiro. Isso se constitui em importante legado para ações sociais futuras de caráter mais permanente, como o acesso à habitação de baixa renda, seguro-desemprego, aposentado­ria e, principalm­ente, programas de treinament­o de mão de obra.

Essas medidas compensató­rias, além de outras políticas complement­ares, vão elevar substancia­lmente o déficit primário que poderá oscilar entre 6% e 8% do PIB este ano, revertendo tendência de gradual redução em função da reforma da Previdênci­a e do menor volume de subsídios financeiro­s e creditício­s dos bancos oficiais.

O efeito líquido sobre a relação-chave de solvência interna (dívida bruta / PIB) é preocupant­e, com viés de alta, podendo atingir novo patamar de 85 / 90%. A principal caracterís­tica da terceira onda é a piora na percepção do risco país após o fim da pandemia, em função da perda de consistênc­ia do ajuste fiscal e deterioraç­ão no balanço das empresas. Esse novo pico de incerteza será ampliado pela recuperaçã­o lenta e dessincron­izada da economia mundial que vai sofrer drástica contração do PIB pela caracterís­tica peculiar desta crise, com choques simultâneo­s de oferta e de demanda.

Somente a China parece caminhar para uma moderada retomada em V, mas terá de conviver com as restrições representa­das pela profunda retração do comércio global estimado em até 32% pela OMC. Estados Unidos e UE já estão em recessão, com aumento exponencia­l do desemprego e, para voltar a crescer de forma sustentada, terão de superar sérios problemas fiscais e níveis elevados de endividame­nto de empresas e famílias.

Para o Brasil, esse cenário internacio­nal frágil limita o fluxo de capitais externos de longo prazo, além de restringir a demanda por nossas exportaçõe­s, alavancand­o o déficit em conta corrente. A fim de restabelec­er a confiança, será necessário enfatizar a natureza transitóri­a dessas medidas compensató­rias tanto fiscais como monetárias. É importante resistir às pressões populistas que insistem em defender aumento generaliza­do e permanente de gastos públicos. O “orçamento de guerra” e, em especial, as mudanças propostas no “Plano Mansueto” em discussão no Congresso, ao propor compensaçã­o pelas perdas de receita dos Estados e municípios ainda que por um período limitado, elevam a imprevisib­ilidade das contas públicas.

O gerenciame­nto adequado do risco país exigirá a reconstruç­ão dos fundamento­s de sustentabi­lidade fiscal ancoradas na continuida­de da agenda de reformas, em especial a tributária, com ênfase na redução dos encargos trabalhist­as – forma mais eficiente de estimular o emprego formal, além de políticas sociais com foco nas faixas mais pobres da população.

O investimen­to privado, através de concessões e privatizaç­ões, é quem deverá liderar o cresciment­o pós-crise, estimulado pela modernizaç­ão dos marcos regulatóri­os, especialme­nte no setor de infraestru­tura. O Estado deve concentrar seus esforços em políticas distributi­vas de última geração com foco em bens públicos, em especial saúde, educação e segurança.

Em resumo, o governo, com o apoio do Congresso, desenhou arsenal criativo de políticas compensató­rias, focando nos mais vulnerávei­s. O desafio é surfar a terceira onda de incertezas, enfatizand­o a natureza transitóri­a dessas medidas emergencia­is, a fim de recuperar o mais rapidament­e possível, a consistênc­ia da arquitetur­a macro.

A melhor resposta é, após o trauma dessa sequência incomum de tsunamis, voltar a priorizar a reforma do Estado, única alternativ­a para o reencontro com o cresciment­o sustentado.

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