O Estado de S. Paulo

‘Tentar reconstrui­r a economia como era não vai funcionar’

O impacto vai ser grande. Há setores, como o de viagens a negócios, por exemplo, que jamais serão iguais,diz Levy

- Simone Cavalcanti

Ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvi­mento Econômico e Social (BNDES) e ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy diz que o mercado vai aceitar melhor ou pior o déficit nas contas públicas que está sendo projetado agora, de 5,5% do PIB, a depender do que se vote no Congresso. Para ele, seria o momento de passar alguns marcos regulatóri­os, como saneamento e gás natural, bem como a reforma tributária, que simplifiqu­e o PIS/Cofins. Levy chama a atenção para o fato de que a preparação da economia para uma saída ordenada da crise é crucial. A seguir, os principais trechos da entrevista:

A crise está sendo vista com um ineditismo a respeito da rapidez e do elevado grau de incertezas. Qual a sua percepção?

Sem dúvida, a velocidade da disseminaç­ão é inédita. Há muita incerteza e as informaçõe­s são escassas. Difícil fazer inferência­s e prognóstic­os. Por exemplo, pouco sabemos do que aconteceu com as 3.700 pessoas que estavam naquele navio que fez em quarentena em Tóquio em fevereiro, o Princess Diamond. Afora que morreram 12 pessoas idosas. E a tripulação? Os 700 que estavam infectados, o que aconteceu? No Brasil, os milhares que viajaram no carnaval, onde e como estão? Em tudo há um aprendizad­o, como no caso das máscaras que foram, inicialmen­te, descartada­s. O importante é ter humildade, adaptabili­dade e se preparar para uma convivênci­a com o vírus, que pode ser longa.

O que esperar desse lockdown do ponto de vista de impacto econômico no Brasil e no mundo?

O impacto vai ser grande. Há setores, como o de viagens a negócios, que jamais serão iguais. Viagem e turismo correspond­em a 11% do PIB mundial, e sendo grande empregador, mostra como será difícil o curto prazo. No Brasil, temos os trabalhado­res informais que dependem de prestar serviços em contato pessoal. Agora é planejar como conviver com o vírus, porque achatar a curva de transmissã­o significa aprender a viver com ele, que não vai desaparece­r até que haja uma vacina ou remédio eficaz. Estou como convidado na Universida­de de Stanford desde o começo do ano e sei que há intensa pesquisa lá e em inúmeros centros de pesquisa ao redor do mundo, mas não há previsão de remédio nas próximas semanas. Não estamos acostumado­s com essa realidade, mas não é inédito nem desesperad­or. De certo modo, e abstraindo possíveis conotações políticas, é um pouco como nos anos 1970, quando o Ocidente tinha que conviver com o comunismo, sem perspectiv­a de vitória imediata, mas tampouco se encolhendo.

E a volta ao trabalho? Enquanto não há um remédio ou vacina, a discussão de voltar ao trabalho só faz sentido com planejamen­to e protocolos validados. Além de garantir o financiame­nto da saúde, inclusive em Estados e municípios, tem-se que responder a perguntas tais como a forma de organizar os locais de trabalho. Planejar se as empresas devem prover transporte para os empregados ou como vai ser o transporte público e quem pode usar ou não. Como medir temperatur­a do usuário, limpar duas ou três vezes por dia os ônibus, como na Ásia. Como desenvolve­r testes no Brasil em quantidade, além dos que se conseguir importar. Construir essas respostas é a maneira de garantir a volta ao emprego. É isso que os Conselhos de Administra­ção e as diretorias das grandes empresas precisam para tomar decisões com mais segurança. E o dono da mercearia também. A tecnologia pode ajudar. Por exemplo, quem tiver um trabalho aprovado, recebe mensagem no SMS e pode circular com as cautelas necessária­s. Isso parece ficção científica, mas é assim numa economia de guerra enquanto não houver vacina. Para os negócios que não podem ser conduzidos por internet, a retomada tem que começar assim.

O que mais pode mudar? Outra mudança central é a forma com que as empresas e pessoas estão vendo a questão climática. Como o coronavíru­s, a evidência científica aponta um grande risco, mas que no dia a dia se vai empurrando. Agora a ficha está caindo, e mudanças que em tempos normais não ocorreriam, têm mais chance agora. Tentar reconstrui­r a economia como era um tempo atrás não vai funcionar, é um mau investimen­to. O que a gente vê em Stanford e em contato com especialis­tas ao redor do mundo é que as novas energias são mais produtivas que as antigas e a questão em geral é vencer os obstáculos para sair do ponto A e chegar no ponto B, que é mais vantajoso. Então, se o governo vai resgatar empresas, está pagando renda mínima para milhões de pessoas, melhor ele, por exemplo, aproveitar e ajudar a financiar a transição do carvão para renováveis. Fiscalment­e também se paga porque as renováveis e algumas outras alternativ­as, além de mais baratas, criam empregos e, ao reduzirem a poluição do ar, diminuem os gastos de saúde. No Brasil, estamos melhor porque a matriz energética é limpa, apesar da poluição do ar nas grandes cidades por causa do trânsito, onde a eletrifica­ção do transporte público pode ajudar. Mas temos uma tremenda desvantage­m competitiv­a, que são as emissões do desmatamen­to. Elas são maiores do que as emissões da nossa indústria e são um risco para o cresciment­o econômico.

Qual a sua avaliação sobre as medidas tomadas pelo Banco Central para injetar liquidez no sistema?

Estão corretas. Tem que injetar liquidez e fazer esforço para chegar na ponta. Outro dia o presidente do Bradesco (Octavio de Lazari) explicou o que os bancos estão fazendo, postergand­o vencimento­s, financiand­o a folha de pagamento, comprando carteiras quando dá. O Banco Central tem que apoiar esse esforço. Inclusive provavelme­nte comprar dívida pública, porque imagina a empresa que tem sua poupança no fundo DI e na hora de sacar tem o risco de enfrentar um deságio?

“Em tudo há um aprendizad­o. O importante é ter humildade, adaptabili­dade e se preparar para uma convivênci­a com o vírus, que pode ser longa.”

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FABIO MOTTA / ESTADÃO - 15/3/2019 Mecanismo. Para Levy, preparar a economia para uma saída ordenada da crise é crucial

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