Fatura amarga
Osentimento hoje de investidores sobre o Brasil é de uma profunda desconfiança de que a deterioração fiscal em razão dos gastos extras para combater o impacto econômico da pandemia do coronavírus não vai ser restrita apenas a 2020.
Esse temor cresceu depois que a Câmara aprovou o projeto de socorro financeiro a Estados e municípios. O governo havia proposto um valor nominal fixo de auxílio de R$ 40 bilhões para cobrir a perda de receitas com uma queda esperada na arrecadação de ICMS e ISS em razão das medidas restritivas para conter a disseminação do vírus, que provocaram parada súbita da atividade econômica.
Mas a Câmara aprovou um projeto que, além da suspensão de R$ 9,6 bilhões de dívidas dos governos regionais com o BNDES e Caixa, prevê uma recomposição da perda de receitas com esses impostos por seis meses, sem um limite fixo. Se essa queda for de 30%, a estimativa é de que a fatura para o governo federal será de R$ 80 bilhões.
E se essa queda for maior do que 30%? E se essa garantia de compensação incentivar a concessão indiscriminada de benefícios fiscais por governadores e prefeitos? E se estimular uma prorrogação mais prolongada por esses gestores regionais de medidas restritivas para a atividade econômica?
Ninguém sabe, portanto, o buraco que terá de ser coberto pela União, que arcará com todos os riscos ao que acontecer com os Estados e municípios e com o que decidir seus gestores.
Outra preocupação dos investidores é com a postergação do pagamento de vários impostos pelas empresas, como a contribuição previdenciária patronal ao INSS, o recolhimento de PIS/Cofins e a postergação da parte federal do Simples Nacional para microempresas, entre outros diferimentos. Além disso, houve a redução temporária do IOF sobre operações de crédito e sobre as contribuições das empresas ao Sistema S.
Entre postergação, redução e até cancelamento de impostos, essa conta supera R$ 140 bilhões a menos na receita com tributos e contribuições. No segundo semestre, teoricamente, as empresas teriam de pagar ao governo os tributos cujo pagamento foi adiado. Mas será que isso vai mesmo acontecer? Os vários programas de refinanciamentos de dívidas tributárias (Refis) nos últimos anos, resultando em descontos pesados de impostos devidos, reforçam a desconfiança dos investidores sobre uma perda de arrecadação maior para o governo federal.
O economista para Brasil do banco Barclays, Roberto Secemski, diz trabalhar com a hipótese de que 50% do pagamento dos impostos postergados não ocorram integralmente neste ano, mas só em 2021. “Isso representaria um impacto de até R$ 58 bilhões em impostos não arrecadados neste ano”, explica Secemski em relatório a clientes.
A dúvida que ainda paira é se o governo não conseguir receber o pagamento desse valor postergado de tributos nem mesmo em 2021.
O nervosismo dos investidores é porque o Brasil entrou na pandemia do coronavírus numa situação já frágil. A classificação de risco soberana do País começou a crise com três níveis abaixo do grau de investimento por duas agências de rating (S&P e Fitch). No caso da Moody’s, a nota brasileira está dois níveis aquém desse piso. O México, por exemplo, teve sua nota rebaixada recentemente pela S&P, de BBB+ para BBB, mas ainda um nível acima do grau de investimento.
Além disso, a dívida bruta do governo brasileiro, que em dezembro era de 75,8% do PIB, deve saltar para 90% do PIB ao fim deste ano em razão do maior rombo fiscal diante da combinação de esperada recessão e de gastos extras para combater os efeitos econômicos do coronavírus. O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, já disse que o déficit primário caminha para R$ 600 bilhões em 2020. E há quem estime que esse déficit possa atingir 8% do PIB neste ano.
Até agora o Congresso e o governo federal pouco fizeram para acalmar o mercado de que as despesas extras com a crise ficarão restritas a 2020 e que, a partir de 2021, volta a valer o arcabouço fiscal em vigor desde o governo Michel Temer, especialmente o teto de gastos.
Sem essa garantia, a percepção é de que, quando a pandemia da covid-19 for controlada, a saída da crise será bem mais amarga do que se imagina.
Até agora o Congresso e o governo federal pouco fizeram para acalmar o mercado