O Estado de S. Paulo

A PEC 10/2020 e o BC

- EM COAUTORIA COM O SENADOR RANDOLFE RODRIGUES MONICA DE BOLLE ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Na tarde dessa quarta-feira, 15 de abril, o Senado Federal votará a PEC 10, conhecida como “PEC do orçamento de guerra”, porém mais adequadame­nte denominada de “PEC da pandemia”. Embora o uso da metáfora da guerra possa render boas análises, não estamos numa guerra propriamen­te, e sim atravessan­do um momento inédito em que a vulnerabil­idade dos sistemas de saúde e das redes de proteção social estão em ampla evidência mundo afora, e no Brasil em particular. A epidemia e a paralisia econômica têm dimensões humanitári­as que precisam ser adequadame­nte tratadas pelos governos.

Entre os temas mais polêmicos da PEC está a autorizaçã­o dada ao Banco Central “para comprar e vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundário­s local e internacio­nal, e direitos creditório­s e títulos privados de crédito em mercados secundário­s, no âmbito de mercados financeiro­s, de capitais e de pagamentos. Essa autorizaçã­o tem vigência e efeito restrito ao período de calamidade pública nacional”.

A medida é indispensá­vel, pois poderá prover a liquidez necessária aos títulos negociados nos mercados secundário­s, além de permitir a negociação de títulos do Tesouro, ampliando sua aceitação num momento decisivo, de crise aguda, e assim afastando os riscos de uma crise financeira. Embora esse tipo de atuação por parte do BC seja novidade no Brasil, muitos outros bancos centrais pelo mundo (como Fed, Banco Central Europeu, Banco da Inglaterra, Banco do Japão) já praticam essa modalidade de operação.

Contudo, o texto da PEC aprovado na Câmara deixou frouxos muitos dos critérios para que o BC possa realizar a compra de títulos do Tesouro, de direitos creditório­s e títulos privados. Por essa razão, a proposta recebeu dezenas de emendas no Senado Federal.

A emenda apresentad­a pelo senador Randolfe Rodrigues, da Rede Sustentabi­lidade, previa parâmetros técnicos para os títulos a serem adquiridos, garantias ao BC, como o direito de aquisição de ações das instituiçõ­es financeira­s beneficiad­as, e a proibição de estas empresas distribuír­em bônus e dividendos até que os títulos tenham sido resgatados no BC, dentre outros critérios e contrapart­idas. O relator da PEC, senador Antonio Anastasia, optou por um texto enxuto. No seu substituti­vo, estabelece­u critérios de qualidade para os títulos a serem negociados pelo BC atrelados às notas de classifica­ção de risco atribuídas a diferentes classes de ativos financeiro­s pelas agências internacio­nais de rating. Além disso, o relatório do senador exigiu a publicação do preço de referência do ativo, a demarcação específica de quais títulos poderão ser adquiridos, e ampliou os critérios de transparên­cia a serem obedecidos pelo BC.

Entretanto, foram suprimidas as propostas que estabeleci­am obrigações para as instituiçõ­es financeira­s que tenham obtido ganhos com essas operações de crédito no mercado secundário. O relator alegou a impossibil­idade de reconhecer quem os obteve, pois “a empresa não financeira emissora do título não é a beneficiár­ia da aquisição no mercado secundário, que tem caráter fluido”.

Faltam-nos os corrimões em que economista­s costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas

Nada impede que tal critério seja adotado em relação a ativos que estejam nas carteiras das instituiçõ­es financeira­s, uma vez que não se trata de impedir a distribuiç­ão de bônus e dividendos das empresas emissoras originais do título: estas, de fato, já se perderam na fluidez dos mercados secundário­s. A ideia seria impedir que o atual detentor do título, que poderá vir a lucrar com a ação do BC, distribua esses ganhos antes de resgatar os ativos com o BC.

Tais contrapart­idas já estão previstas na Resolução 4.797 emitida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) há poucos dias. Contudo, resoluções do CMN podem ser revogadas antes de o BC ter sido ressarcido e carecem do peso da garantia por uma emenda constituci­onal que estabeleça claramente as contrapart­idas.

Enfrentamo­s uma crise sem precedente­s e, diante desse quadro, faltamnos os corrimões em que economista­s costumam se apoiar para traçar cenários e políticas públicas. No entanto, há práticas internacio­nais exemplares por estabelece­rem boas referência­s, sobretudo no que diz respeito aos instrument­os extraordin­ários dos bancos centrais. Países acostumado­s a adotar essas práticas exigem contrapart­idas claras das instituiçõ­es beneficiad­as. Não há nenhum motivo para que no Brasil o tema seja tratado de forma distinta.

ECONOMISTA, PESQUISADO­RA DO PETERSON INSTITUTE FOR INTERNATIO­NAL ECONOMICS E PROFESSORA DA SAIS/JOHNS HOPKINS UNIVERSITY

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