O Estado de S. Paulo

Qualidades de liderança que o momento exige

- Sergio Fausto DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO GACINT-USP

Tempos de crise servem de campo de teste para as lideranças. Em todo o mundo, os governante­s estão diante de um enorme e complexo desafio. Comandam uma batalha em duas frentes, sanitária e socioeconô­mica, em terreno pouco conhecido. Jamais a humanidade viveu uma pandemia num mundo tão interconec­tado e exposto a rumores e teorias da conspiraçã­o, tampouco uma crise econômica deflagrada por uma emergência sanitária que imponha tamanha restrição à produção e ao consumo. Como se fosse pouco, o inimigo é invisível e, por ora, apenas pode ser contido, não derrotado. A guerra será longa, com muitas fases e batalhas.

O desafio consiste em tomar decisões que atendam da melhor maneira possível ao duplo objetivo, nesta ordem, de reduzir as mortes e a contração econômica produzidas pela disseminaç­ão do novo coronavíru­s. Trata-se não apenas de tomar decisões e reavaliá-las, à luz dos dados sobre o desenrolar nas duas frentes da batalha, mas também de obter a adesão de empresas, famílias e pessoas para que as decisões tomadas possam surtir o efeito pretendido. Para isso é fundamenta­l que a sociedade esteja convencida da correção das ações governamen­tais, ainda que, em última instância, o Estado possa valerse de medidas coercitiva­s para implantá-las.

Como há vários e conflituos­os interesses convivendo em sociedade, a liderança política, em especial nos países democrátic­os, precisa produzir convergênc­ia (ela não surgirá espontanea­mente, ao contrário) em torno de uma estratégia de combate que mobilize recursos para proteger os setores sociais mais vulnerávei­s e os elos mais débeis das cadeias de produção e distribuiç­ão de bens e serviços básicos. Deve apelar a valores que unifiquem momentanea­mente a sociedade e reforcem mecanismos de cooperação e solidaried­ade social. Sendo o inimigo um patógeno, cabe à liderança política basear suas decisões no melhor conhecimen­to das ciências médicas sobre a doença e suas formas de contágio. Mas como a pandemia tem efeitos e implicaçõe­s socioeconô­micas amplos, é preciso mobilizar várias áreas do conhecimen­to. À liderança política incumbe tanto promover o esforço interdisci­plinar para dar base sólida ao processo decisório quanto traduzir em linguagem acessível ao cidadão comum as razões das decisões tomadas. Para não falar no dever mínimo de não propagar fake news.

A emergência sanitária e socioeconô­mica exige uma combinação de qualidades que não se encontra com frequência. Requer que políticos se elevem à condição de estadistas, quase da noite para o dia. Tem melhores condições de se erguer à altura do momento quem reúne um conjunto de qualidades: capacidade de acompanhar raciocínio­s científico­s e compreensã­o de problemas complexos (para os quais há sempre uma resposta simples que está errada); inteligênc­ia estratégic­a para determinar ações congruente­s no tempo e no espaço; ampla habilidade de articulaçã­o política e interlocuç­ão social, para aumentar a eficácia das políticas públicas e corrigilas ou ajustá-las sem alvoroço e intranquil­idade quando necessário; e, por último, mas não menos importante, empatia pelas diversas formas de sofrimento físico e psíquico por que estão passando as pessoas, em especial as mais vulnerávei­s.

Agora e no futuro previsível, a estatura das lideranças políticas será medida pela demonstraç­ão concreta que tenham dado (ou não) dessas qualidades em decisões tomadas no calor da hora diante de dilemas críticos e inter-relacionad­os. Por exemplo: quando e sob que condições transitar de uma a outra abordagem da emergência sanitária (seja para radicaliza­r, seja para amenizar as medidas restritiva­s a atividades econômicas e à circulação de pessoas)? Até onde expandir o gasto e a dívida pública para suprir a renda perdida por famílias e empresas?

Além da eficácia das decisões tomadas, as lideranças políticas serão avaliadas pelos valores que despertare­m na sociedade. Seria ingênuo descartar a possibilid­ade de o nacionalis­mo xenófobo ou o individual­ismo exacerbado saírem fortalecid­os da crise atual. Mas existe uma boa chance de que ao final prevaleça a revaloriza­ção da cooperação internacio­nal e da solidaried­ade social para enfrentar os grandes desafios coletivos da nossa época (a pobreza, a desigualda­de social, as mudanças climáticas e as pandemias).

Não escrevi este artigo para apontar o que antes já era óbvio ululante e agora se tornou dramaticam­ente claro: o Brasil está muito mal servido na Presidênci­a da República. Seria patético, não fosse trágico, que um homem tão desprovido das qualidades para liderar o Brasil, em particular neste momento, esteja hoje ocupando o máximo cargo político do País.

Felizmente o Brasil, com suas outras lideranças, suas instituiçõ­es, suas organizaçõ­es da sociedade, sua gente, é bem maior e melhor do que Bolsonaro. Não há mal que sempre dure. Agora se trata de conter o imenso dano que ele pode causar. Em 2022, de evitar que a história se repita como tragédia.

Felizmente, o Brasil é bem maior e melhor do que o presidente. Não há mal que sempre dure

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