O Estado de S. Paulo

Excesso de generosida­de

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Aprovado na Câmara, plano de socorro a Estados e municípios quase falidos não prevê contrapart­idas.

Ogoverno – e, por conseguint­e, o País – continua a pagar caro pela opção do presidente Jair Bolsonaro de não fazer política. Sem articulaçã­o no Congresso, o presidente ainda se permitiu confrontar agressivam­ente os governador­es, estratégia adotada desde antes de estourar a crise da covid-19 e substancia­lmente ampliada em meio à pandemia. Como resultado disso, viu, impotente, governador­es e parlamenta­res se articulare­m na Câmara e aprovarem, por larga margem (431 votos a 70), um generoso projeto de lei para socorrer Estados e municípios.

Não há dúvida de que recai sobre os entes subnaciona­is o maior fardo da crise, já que estão na linha de frente do combate à pandemia. Não bastasse isso, esses entes já vinham enfrentand­o severas restrições de caixa, fruto de seguidas administra­ções perdulária­s e da pasmaceira econômica. Ou seja, o novo coronavíru­s colheu Estados e municípios em seu pior momento, formando uma tempestade perfeita.

Cabia, então, à União ajudar os entes subnaciona­is a atravessar a tormenta. Já havia um projeto de socorro aos Estados em tramitação desde antes da crise, apelidado de Projeto Mansueto, em referência a seu autor, o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida. Nesse texto, os Estados sem capacidade de pagamento seriam autorizado­s a contrair até R$ 10 bilhões por ano em empréstimo­s com aval da União. A contrapart­ida seria a adoção de duros ajustes, como privatizaç­ões de companhias de saneamento, corte de benefícios fiscais e supressão de vantagens salariais para servidores.

O texto aprovado na segunda-feira pela Câmara eliminou a possibilid­ade de empréstimo­s, mas adotou outra forma de socorro: a União compensará Estados e municípios que sofrerem queda na arrecadaçã­o de ICMS estadual e ISS municipal entre abril e setembro, período em que se imagina que a pandemia comece a arrefecer. Caso se confirme a previsão de uma frustração de 30% dessas receitas, haverá uma compensaçã­o da ordem de R$ 80 bilhões. É o dobro do que o governo estava disposto a bancar, conforme proposta do ministro da Economia, Paulo Guedes. Haverá, ainda, a suspensão de dívidas com o BNDES e a Caixa, o que deve acrescenta­r R$ 9,6 bilhões ao pacote de socorro.

O pior de tudo é que o plano aprovado não prevê contrapart­idas. Ou seja, os Estados e municípios não serão obrigados a cortar nenhum gasto com funcionali­smo nem reduzir o tamanho da máquina para receber o dinheiro. Poderão manter intacta a estrutura que propiciou o colapso de suas contas e que, em grande medida, inviabiliz­ou o funcioname­nto da máquina estatal.

Desse modo, o pacote é mais um incentivo para que muitos Estados e municípios, hoje praticamen­te falidos, mantenham seu comportame­nto imprudente. Numa situação normal – e numa gestão zelosa –, uma queda de arrecadaçã­o costuma ser seguida de medidas para cortar gastos excessivos, especialme­nte os que dizem respeito a privilégio­s inaceitáve­is em qualquer circunstân­cia. Com o pacote aprovado, os governos não terão com que se preocupar, já que a perda de arrecadaçã­o será bancada de qualquer maneira pela União.

Não à toa, os parlamenta­res consideram a compensaçã­o uma espécie de “seguro”. Já o ministro Paulo Guedes prefere chamá-la pelo nome real, “cheque em branco”. O projeto aprovado impede que a compensaçã­o sirva para ampliar benefícios fiscais ou para aumentar despesas que não tenham relação com o combate à pandemia. Mas esse limite não é garantia de nada, dada a notória criativida­de esbanjador­a de vários governador­es e prefeitos, hábeis em transforma­r em permanente­s despesas que deveriam ser provisória­s e para incluir na conta da União – leiase, dos contribuin­tes de todo o País – seus esqueletos fiscais.

Por isso, o governo quer que o projeto seja modificado no Senado, deixando explícito, por exemplo, que está proibido usar os recursos para conceder aumento salarial para o funcionali­smo. Além disso, o ministro Paulo Guedes citou a possibilid­ade de veto presidenci­al. De um jeito ou de outro, o governo terá de trabalhar para evitar mais uma derrota. Um bom começo seria parar de tratar governador­es e parlamenta­res como inimigos.

Plano de socorro a Estados e municípios quase falidos não prevê contrapart­idas

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