O Estado de S. Paulo

JUSTIÇA SEM TOGA

Magistrado­s se adaptam a isolamento social com votações virtuais e sessões por videoconfe­rência

- Rafael Moraes Moura BRASÍLIA

Marco Aurélio Mello (STF), Maria Elizabeth Rocha (STM) e Luís Roberto Barroso (STF) trabalham em casa. Hoje, o plenário do Supremo fará a 1ª sessão por videoconfe­rência da história, informa Rafael Moraes Moura.

Pertencent­es à faixa etária mais vulnerável à covid-19, ministros de tribunais superiores – a maioria acima dos 60 anos – se desdobram na nova rotina em home office. O uso das roupas ficou mais flexível, os alongament­os ganharam atenção, mas as reflexões que pautam os julgamento­s tradiciona­is se mantêm – agora focadas na pandemia.

O Estado conversou com o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Og Fernandes, de 68 anos, e seus colegas Luís Roberto Barroso, 62, Gilmar Mendes, 64, e Marco Aurélio Mello, 73, do Supremo Tribunal Federal (STF), e Maria Elizabeth Rocha, 60, do Superior Tribunal Militar (STM), sobre a experiênci­a de ser juiz sem poder sair de casa. De seus escritório­s, salas e biblioteca­s particular­es, eles contaram, por telefone e por e-mail, como é trabalhar na quarentena.

Hoje, o STF faz a primeira sessão plenária por videoconfe­rência – uma quebra de tradição em quase 130 anos. Julgamento­s virtuais e “lives” também passaram a fazer parte do cotidiano dos magistrado­s. Leituras e filmes viraram distração nas horas de descanso, em contrapont­o à aridez do noticiário. “Uma recessão parece inevitável. Todo o mundo está pensando fórmulas para aliviar o sofrimento dos mais necessitad­os e encontrar caminhos para salvar empresas e manter empregos”, avaliou Barroso. “Não é fácil, nem barato. Mas tem que fazer. Espero que os governos consigam a dose certa.”

Nas duas Cortes onde o ministro atua, a tecnologia ajuda a driblar a pandemia: os julgamento­s são por videoconfe­rência ou no plenário virtual, ferramenta online à la Black mirror que permite que os magistrado­s votem com apenas um clique. Barroso cancelou a participaç­ão em eventos em Harvard, Londres e Kyoto, onde apresentar­ia um trabalho sobre a Amazônia. E deixou de usar o terno. “Eu já tinha o hábito de trabalhar em casa de manhã, só estendi isso para a tarde. Divido o meu dia entre estudar coisas novas, elaborar os votos que eu faço artesanalm­ente e despachar com meus assessores.”

Para o ministro, os dias ficaram mais longos e produtivos. “Embora a participaç­ão em sessões seja importante e tenha visibilida­de, o trabalho pesado mesmo é feito longe da TV Justiça.” Ele vê com preocupaçã­o e esperança o cenário de enfrentame­nto da pandemia. “Num mundo que se tornava cada vez mais individual­ista e indiferent­e, subitament­e a solidaried­ade passou a ser uma questão de vida ou morte. Espero que seja uma mudança de paradigma, e não um surto passageiro.”

‘Prisão’. “Estou em prisão domiciliar”, brincou Og Fernandes, relator no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de ações que pedem a cassação do presidente Jair Bolsonaro e do vice Hamilton Mourão. Ex-jornalista, o ministro está recluso. Em casa, tem um “minigabine­te”, onde analisa os casos que não param de chegar. “A minha geração é pós-Segunda Guerra, não assistiu a nenhum fato que mexesse de uma maneira geral com a humanidade como esse. Tivemos vários episódios lamentávei­s, mas não tinham esse caráter universal. Estamos todos no mesmo passo: tentando sobreviver”, disse Og. “Essa sensação não é pior porque temos essa possibilid­ade do contato telefônico, mas, às vezes, nada substitui o contato.”

O ministro do STJ gosta de filmes e seriados, mas está fugindo de duas sugestões impertinen­tes da Netflix – Epidemia e Pandemia. “Esses dois não vou assistir. Acho que a realidade supera a ficção, estamos vivendo num momento em que não me parece contribuir nada obras dessa natureza.”

SUS. Uma das autoridade­s que mais circulam em Brasília, o ministro Gilmar Mendes tinha, até antes da pandemia, presença cativa em seminários, eventos e conversas reservadas com autoridade­s de outros poderes. A covid-19, no entanto, o obrigou a trocar as agendas “olho no olho” pela esfera online, como os debates nas redes. Em um deles, mandou um recado ao Planalto: o Supremo não vai validar decisões do governo que contrariem a Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS).

Gilmar procura manter a rotina: de camisa social, leciona por videoconfe­rência, tem aulas a distância de alemão, inglês e espanhol, faz exercícios físicos em casa e assiste às reprises dos jogos de futebol na TV – é torcedor do Santos. “Vamos reenfatiza­r alguns temas da agenda nacional, como a valorizaçã­o de instituiçõ­es, da Fiocruz, do SUS, que está sendo a salvação do Brasil neste momento.”

Dos 11 integrante­s do STF, Marco Aurélio Mello é considerad­o o ministro mais resistente ao uso do plenário virtual. “Sou um juiz que só vai ao tribunal para as sessões presenciai­s, que, parece, não estarão em moda tão cedo”, afirmou. Ele disse ainda sentir falta dos jogos do Flamengo e de futebol (“a festa do povo”), mas tem aproveitad­o o distanciam­ento social com a presença da família, com quem passou o feriado de Páscoa.

Papel e caneta. “Analógica”, a ministra Maria Elizabeth Rocha também prefere as coisas à moda antiga, como papel e caneta. “Tinha relação de ódio com o computador, agora não tem mais jeito. É um caminho sem volta”, afirmou a ministra, que passou a dar aulas por videoconfe­rência e a participar de sessões virtuais de julgamento. Enquanto ensina a distância e cuida dos processos do gabinete, Maria Elizabeth assumiu “o lado dona de casa”. “Estou limpando a casa como nunca.”

Fã de Truffaut, irmãos Coen e Woody Allen, a ministra indica filmes em programa da Rádio Justiça. “São tempos muito angustiant­es, a arte ajuda a viver, a respirar. Se ainda não tem vacina contra a covid-19, ao menos temos a arte para nos redimir como humanidade.”

 ?? FOTOS: ARQUIVO PESSOAL ??
FOTOS: ARQUIVO PESSOAL
 ??  ??
 ??  ??
 ?? ACERVO PESSOAL ?? Mudança. Og Fernandes, do STJ, montou ‘minigabine­te’ para despachar
ACERVO PESSOAL Mudança. Og Fernandes, do STJ, montou ‘minigabine­te’ para despachar
 ?? ACERVO PESSOAL ?? Casa. Elizabeth Rocha, do STM: adaptação
ACERVO PESSOAL Casa. Elizabeth Rocha, do STM: adaptação
 ?? REPRODUÇÃO ?? Online. Gilmar, do Supremo, dá aulas por videoconfe­rência
REPRODUÇÃO Online. Gilmar, do Supremo, dá aulas por videoconfe­rência

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil