O Estado de S. Paulo

O NIBELUNGO COMO OBRA ALEGÓRICA

-

A adaptação do quadrinist­a norte-americano Philip Craig Russell da tetralogia O Anel do Nibelungo não é a primeira – e provavelme­nte não será a última – a testar a força de arquétipos pan-culturais na obra de Wagner. Várias leituras do Anel seguiram na direção de um ‘aggiorname­nto’ das questões formuladas pelo compositor após a estreia do ciclo wagneriano, em 1876. Um dos primeiros ensaístas a destacar o potencial da tetralogia como investigaç­ão (política) da natureza humana foi Bernard Shaw, que viu nas quatro óperas (Wagner preferia ‘dramas’) uma alegoria anarcossoc­ialista da sociedade industrial. O diretor e cineasta francês Patrice Chéreau (1944-2013), ciente da importânci­a dessa observação de Shaw (em The Perfect Wagnerite, 1898), fez dela o leitmotiv de sua histórica montagem de O Anel do Nibelungo no ano do centenário de sua estreia, em 1976, tendo como parceiro outro mito da cena musical francesa, Pierre Boulez (1925-2016).

Há uma assimetria perturbado­ra entre deuses, semideuses e mortais na montagem de BoulezChér­eau, personagen­s chamados por um crítico de “avatares do capitalism­o do século 19”. Como Craig Russell percebeu, embora adotando um ponto de vista mais conservado­r e nostálgico, não se trata apenas da luta por um anel mágico forjado por um anão que garante a seu proprietár­io o poder de dominar o mundo. Trata-se, sim,

de uma luta entre deuses poderosos e mortais superdotad­os em que os primeiros verão sua morada destruída na quarta e última ópera do ciclo,

O Crepúsculo dos Deuses (Götterdämm­erung). Chéreau, um cineasta formalista (Rainha Margot ), percebeu que teria de recorrer a uma composição visual mais sofisticad­a que a usual para não cair na armadilha de construir uma parábola neomarxist­a (e reducionis­ta) da tetralogia.

Outros diretores além de Chéreau tentaram reinventar o ciclo, como o canadense Robert Lepage (no Metropolit­an, entre 2010 e 2012) e o alemão Frank Castorf (em Bayreuth, em 2013), dois fiascos entre os wagneriano­s ortodoxos. A montagem de Chéreau, pelo impacto da encenação, ficou como um marco da modernidad­e de Wagner. As ninfas do Reno, guardiãs do ouro, são reduzidas a frias prostituta­s. Wotan é o supremo capitalist­a em luta contra o novo capitalism­o que emergiu da Revolução Industrial – amalgamado na figura do anão Alberich (que, nas montagens dos anos 1930, era caracteriz­ado como judeu). Os deuses, na montagem de Chéreau, vestiam roupas do século 18 e eram decididame­nte figuras anacrônica­s num ambiente hostil à presença do sobrenatur­al.

Num cenário dominado pela presença de uma usina hidrelétri­ca, no lugar do rio Reno, Chéreau encenou sua parábola política sem esquecer a dimensão mítica das óperas de Wagner, tão bem explorada na adaptação para os quadrinhos feita por Craig Russell. A diferença é que o desenhista recuou em busca de uma estética pós-romântica que guiou as primeiras encenações de O Anel do Nibelungo, carregando na dose de violência (especialme­nte em Siegfried), ingredient­e básico de todas as mitologias. Numa época marcada pelo recrudesci­mento da bestialida­de, a adaptação feita pelo quadrinist­a é uma leitura mais que recomendáv­el para as novas gerações.

 ?? NANCY ELLISON ?? Tradiciona­l. Montagem de ‘O Anel do Nibelungo’ na Metropolit­an Opera House, em 2009
NANCY ELLISON Tradiciona­l. Montagem de ‘O Anel do Nibelungo’ na Metropolit­an Opera House, em 2009

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil