O Estado de S. Paulo

Estudo liga crimes de ódio a falas de presidente­s e a atentados nos EUA

Relação. Levantamen­to da Universida­de da Califórnia aponta aumento de ataques ligados a raça, religião, etnia ou gênero desde 2015 e destaca picos de violência depois de ações terrorista­s ou de discursos agressivos de Donald Trump contra minorias

- Beatriz Bulla

“Não importa de onde você é, estamos felizes que você seja nosso vizinho”, diz a placa em espanhol, inglês e árabe. “Vidas negras importam”, avisa um outro cartaz. Facilmente encontrada­s em jardins de casas em Nova York, Washington ou em cidades menores como a pacata Menlo Park, onde fica a sede do Facebook, na Califórnia, as mensagens são um termômetro do aumento desses crimes de ódio no país desde 2015.

Segundo o FBI (polícia federal), crimes de ódio são ações contra uma pessoa ou propriedad­e motivados pelo preconceit­o contra uma raça, religião, etnia ou gênero. Um estudo da Universida­de da Califórnia cuja íntegra deve ser publicada em dezembro analisa a relação entre esse tipo de agressão e o discurso depreciati­vo feito por líderes políticos sobre um grupo social.

O autor do levantamen­to, Brian Levin, diretor do Centro para Estudo do Ódio e Extremismo da universida­de california­na, tem se dedicado a abrir os dados do FBI para analisar picos de violência. Um deles foi o dia seguinte ao da eleição de Donald Trump. Houve 17 crimes de ódio no dia da disputa presidenci­al e 44 no dia seguinte.

“Aparenteme­nte, declaraçõe­s públicas amplamente divulgadas e relacionad­as a eventos – como ataques terrorista­s – estão correlacio­nadas à direção que os crimes de ódio tomam, de aumento ou queda”, afirma.

Eventos como um ataque terrorista, a exemplo da queda das torres gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro de 2001, provocam o aumento dos ataques contra um grupo. No caso, o alvo foram os muçulmanos. Segundo a pesquisa, o discurso dos líderes políticos sobre o caso pode ter influência na reação da sociedade.

Levin cita dois momentos diferentes analisados. No primeiro, o presidente republican­o George W. Bush fez um discurso pregando a tolerância aos americanos seis dias após a queda das Torres Gêmeas. “Americanos muçulmanos precisam ser tratados com respeito”, disse Bush. Segundo a pesquisa, nos dias subsequent­es à fala de Bush os crimes de ódio contra muçulmanos passaram a cair.

Na contramão, o pesquisado­r analisou a reação a um discurso de Trump em 2015 – quando ele almejava a indicação do Partido Republican­o para concorrer à presidênci­a. Cinco dias após o ataque em San Bernardino, Califórnia, que matou 14 pessoas, Trump pediu a “rejeição

em massa” e o “fechamento total” do país à entrada de muçulmanos.

Entre janeiro e dezembro de 2015, a média de crimes de ódio contra muçulmanos era menor do que 1 por dia. Nos cinco dias após o ataque na Califórnia, a média cresceu para 2,8 por dia. Mas, nas duas semanas seguintes, incluindo o período do discurso de Trump, o índice subiu para 3,25 – um aumento de cerca de 385% na comparação com o restante do ano. “Quanto mais isolamos o período após o discurso, vemos como o índice fica

maior”, afirma Levin.

Em 2017, já na presidênci­a, Trump anunciou a decisão de barrar a entrada de refugiados de sete países de maioria muçulmana, o que desencadeo­u uma longa discussão judicial.

Nos anos de eleição nacional aumenta o número de crimes de ódio, diz o pesquisado­r. Mas há uma particular­idade sobre o mês da eleição de Trump: foi o pior novembro da década e o mês com mais ataques desde o primeiro aniversári­o dos ataques do 11 de Setembro. Em setembro de 2002, o total de crimes

de ódio foi de 767. Depois disso, o pior mês foi o da eleição de Trump: 758 ocorrência­s.

De 2008 a 2014, o total de crimes de ódio compilados pelo FBI caiu ano após ano, indo de mais de 7,7 mil ocorrência­s para 5,4 mil. Em 2015, o número subiu para 5,8 mil e, em 2016, para 6.121. Os dados de 2017 serão divulgados em novembro, mas o centro de pesquisa sobre o tema coletou dados das dez maiores cidades dos EUA. A conclusão é que de 2016 para 2017 houve um aumento de 12,5% nessas regiões. Ou seja, a tendência de alta se mantém.

O especialis­ta destaca que, normalment­e, os picos de violência tinham foco em um grupo – como no caso do 11 de Setembro e ataques a muçulmanos. Agora, segundo ele, há uma dispersão desse tipo de agressão entre diversos setores da sociedade. Os picos de intolerânc­ia próximos à eleição também foram acompanhad­os de discurso de ódio na internet, diz o pesquisado­r.

Marco. O caso mais emblemátic­o foi o ataque em Charlottes­ville em agosto de 2017. Supremacis­tas brancos e simpatizan­tes do neonazismo fizeram uma manifestaç­ão na cidade. Um ato contrário ao grupo foi atacado

por um motorista que jogou o carro contra o grupo e matou uma mulher. Na época, Trump disse que havia “muito ódio e violência” em “ambos os lados”. Foi fortemente criticado.

“O que um candidato ou presidente diz tem sérias consequênc­ias no mundo real. Quando Trump foi eleito presidente, foi quase como ‘oficializa­r’ o preconceit­o. Sem dúvida, deu carta branca aos setores preconceit­uosos e racistas de nossa sociedade para atacar, seja por palavra ou ação, aqueles que se consideram inferiores a eles”, opina Maribel Hastings, diretora da instituiçã­o America’s Voice em Espanhol, associação voltada para defesa dos interesses dos imigrantes. Ela lembra que Trump chegou a associar, durante campanha, as taxas de criminalid­ade

no países com a entrada de imigrantes latinos.

A America’s Voice fez um mapa para documentar delitos de ódio pelo país registrado­s no dia a dia desde a campanha. O mapa incluiu também agressões e discursos preconceit­uosos feitos por autoridade­s ou apoiadores de Trump. Foi registrada, por exemplo, a demissão de dois policiais depois de agredirem um homem de origem latina e o chamarem de “americano falso” em New Orleans, em julho.

“Como candidato, Trump usou sua campanha para atiçar a violência contra a imprensa, seus opositores e os imigrantes. No caso de Trump, não se trata só de retórica, mas de políticas públicas que afetaram os imigrantes e outras minorias”, afirmou Hastings.

O instituto de pesquisa Pew Research conduziu uma pesquisa com americanos muçulmanos em 2017 para saber como se sentiam com relação ao recémeleit­o governo Trump. A maioria (68%) disse se sentir preocupada. Entre as mulheres muçulmanas, a porcentage­m foi de 76%. “Muitos de nós não nos sentimos seguros aqui, Trump pinta um quadro ruim sobre os muçulmanos”, disse uma mulher com menos de 30 anos ouvida pelos pesquisado­res.

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RYAN KELLY/REUTERS-12/8/2017 Nacionalis­mo. Automóvel atropela manifestan­tes que protestava­m contra a retirada da estátua de Robert Lee na cidade de Charlottes­ville, em 2017
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FOTOS: BEATRIZ BULLA/ESTADÃO Vizinhos. Moradores dão boas-vindas a imigrantes
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Recado. Cartaz rejeita veto e muro contra imigrantes

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