O Estado de S. Paulo

Além das culturas que dividem

- •✽ LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

Pode suceder que culturas políticas fortemente divisivas, mais perto do seu ocaso, descubram a pertinênci­a de ideias que superem ou pelo menos subordinem a linguagem de parte ou facção. O comunismo do século 20, uma expressão desse tipo de cultura, ainda nos anos 1930 teve momentos positivos, como nas frentes populares, quando, com idas e vindas, firmou a aliança com os liberal-democratas e muitos outros, contribuin­do para a derrota do nazi-fascismo. E saltando algumas décadas, já a caminho do fim, do interior da sua vertente ocidental brotaria a “heresia” eurocomuni­sta, que afirmava, dessa vez com consistênc­ia, a universali­dade da democracia política.

O panorama, assim, abriu-se para a recomposiç­ão com os social-democratas. No Ocidente, com suas instituiçõ­es progressiv­amente ampliadas e sua “sociedade aberta”, se se quisesse manter o uso do termo “socialismo”, então não haveria dúvida: a democracia passaria a ser o caminho do socialismo, não para o socialismo. A “meta final” ficava em segundo plano ou mesmo desapareci­a. A travessia era tudo, e para percorrêla devia-se deixar de lado a bagagem autoritári­a do passado.

Idealmente, um partido como o PT, criado no momento em que se saía de uma ditadura e, ao mesmo tempo, se prenunciav­a o fim do comunismo, deveria ter tido nesse conjunto de valores um alicerce bem assentado. A formação de seu grupo dirigente e a educação de seus militantes se valeriam dos recursos inéditos que o País redemocrat­izado podia oferecer. Nada de culto à personalid­ade nem formação de subcultura­s dogmáticas e excludente­s – ou, para usar termos mais atuais, o encerramen­to em “bolhas eletrônica­s”, que desprezam a dúvida e erguem muros tão ou mais altos do que os de pedra e cal.

Não foi o que aconteceu. O novo partido permaneceu atado a um sistemátic­o espírito de cisão que o impediu de participar positivame­nte de momentos cruciais da transição. Chegou a votar contra o texto da Constituiç­ão! Parecia cuidar de si próprio, absorvido na dialética interna de grupos e correntes que só se uniam em torno do líder promovido a mito e, posteriorm­ente, a mártir. Sua excepciona­lidade estava garantida a priori e dela viria o resgate de um país perdido em séculos de História infeliz. A recusa de alianças era marca registrada. E suas atitudes anunciavam uma guerra “contra tudo”, muito próxima, por sinal, dos populismos contemporâ­neos, inclusive de direita.

Pode-se perguntar sobre as razões do cresciment­o eleitoral até o grande êxito de 2002. Haveremos de convir que prometer um novo início em tempos de mal-estar da democracia é uma jogada de mestre. Essa mesma sabedoria tática levou à assimilaçã­o do programa de bolsas e à demonizaçã­o do adversário, sem que se tornasse, no entanto, uma visão estratégic­a de Estado e de sociedade. Mas houve coisa mais séria, se cuidarmos do nexo nacional-internacio­nal. O novo partido associou-se, e aí já sem sabedoria alguma, ao caudilhism­o latino-americano de viés “nacional-popular”, que hoje, entre outros fracassos, nos põe diante da catástrofe sem fim da Venezuela.

E foi assim que o petismo, um neologismo sem força para designar uma cultura política amadurecid­a, viria a ressuscita­r a concepção maniqueíst­a da velha esquerda, ainda que sem o pathos revolucion­ário. Acossado por dificuldad­es judiciais, iria mais adiante entrinchei­rarse numa visão redutivame­nte classista do Estado “burguês”, de cujos mecanismos supostamen­te monolítico­s passou a se dizer vítima. E as consequênc­ias não se deteriam nas fronteiras partidária­s: a linguagem “radical” terminou por gestar, como reação quase automática, um antipetism­o avassalado­r, regressivo e autoritári­o.

Em ambos os casos, sucessos eleitorais à parte, podemos reconhecer a mesma dificuldad­e de articular um discurso complexo sobre o País e, afinal, dirigi-lo com o método do consenso. De fato, opondo agressivam­ente mito contra mito, doutrina contra doutrina, a emergente “narrativa” antipetist­a tem análogas pretensões refundador­as, que num certo momento chegaram a expressar-se na ideia estranha de uma Constituin­te de sábios. O hibridismo vem a ser sua marca constituti­va e o sinal de alerta para os mais atentos: o ultraliber­alismo de seu expoente econômico não combina com o histórico estatista da liderança máxima e seu entorno de militares reformados. A política que apregoa é a antipolíti­ca dos nossos tempos: uma razzia dirigida contra o “sistema”, sem que se saiba ao certo, ou sem que se saiba absolutame­nte, qual material será empregado na reconstruç­ão. Não é certo que tenha qualidade melhor.

Este vazio que acompanha toda incursão populista contra sistemas políticos em crise também aqui se busca recobrir com o apelo ao antimodern­o no plano das crenças, dos costumes e orientaçõe­s de valor. O motivado interesse por tudo o que define o perfil de uma sociedade tolerante – direitos humanos, pluralidad­e de estilos de vida, respeito aos valores de crentes e não crentes – se vê abafado pelo fragor de uma “guerra cultural” inédita entre nós, mas já testada, e aprovada, em outras latitudes. A sensatez parece bater em retirada diante de ideólogos que simulam viver ou, o que é mais grave, acreditam viver nos tempos sombrios da contraposi­ção mortal entre capitalism­o e comunismo.

Se quiser ir além do petismo, a esquerda terá pela frente uma longa temporada de autorrefor­ma – na verdade, um verdadeiro processo constituin­te, que ela irresponsa­velmente andou receitando para o País. Com métodos, categorias e linguagem renovada, poderá então contribuir para um diálogo vivo entre culturas e tradições, e até para a mútua “contaminaç­ão” entre elas, como convém às sociedades da diversidad­e. De resto, a persistênc­ia das divisões atuais só nos garantirá uma continuada decadência para a qual – até hoje – nosso país não parece ter sido talhado.

TRADUTOR E ENSAÍSTA, É UM DOS ORGANIZADO­RES DAS ‘OBRAS’ DE GRAMSCI. SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

A persistênc­ia das divisões atuais somente nos garantirá uma continuada decadência

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