O Estado de S. Paulo

Boatos, rumores e ‘fake news’

- •✽ PEDRO CAVALCANTI

No início da década de 60 do século passado surgiu um boato sinistro sobre um falso funcionári­o da Companhia de Gás de Moscou. O assassino da MosGaz, como era conhecido, tocava a campainha de apartament­os onde havia crianças sozinhas, declarava que vinha examinar um vazamento, entrava e assassinav­a.

A notícia tinha um fundo de verdade – houve mesmo um assassino do gás –, mas suas ações foram restritas a alguns casos, que não saíram em jornal algum, mesmo porque a imprensa soviética não publicava notícias policiais. Esse silêncio da imprensa não impediu que o terror se multiplica­sse, boca a boca, por gerações de mães e crianças, tornando-se o que se chamava de lenda urbana, antecessor­a das fake news disseminad­as pela internet.

Há quem acredite que a ampliação do boato da MosGaz se devesse a condições específica­s da União Soviética. Como não se publicavam notícias policiais, não seria possível desmenti-las sem mencioná-las. Ficou assim demonstrad­o, pelo menos, que ignorar o assunto não é uma boa medida. Sem desmentido­s, o boato se reproduz como uma célula cancerosa. Por essa razão não há quem duvide da utilidade dos serviços que se multiplica­m atualmente para verificar a eventual veracidade das notícias.

A questão, no entanto, é complexa e os próprios desmentido­s apresentam riscos. O primeiro dos quais é serem ineficazes. Um dos boatos mais vigorosos e incontrolá­veis surgiu na mesma época na cidade francesa de Orléans. Em certas lojas de moda da o assoalho das cabines de provas apresentav­a um alçapão destinado a capturar mocinhas. Quando o alçapão se abria, elas caíam num quarto secreto onde eram drogadas para acordarem mais tarde algemadas no porão de um navio com destino a um bordel de Buenos Aires.

Quem negasse a relação entre as lojas e o tráfico de brancas, como fizeram de imediato policiais e jornalista­s, era imediatame­nte acusado de se deixar subornar pela máfia dos lojistas. Um livro escrito por Edgar Morin chamava a atenção para o fato de o boato atribuir as misteriosa­s lojas a comerciant­es judeus, o que não é de estranhar, pois como se sabe desde a Idade Média judeus são vítimas dos piores rumores, como, por exemplo, de roubar recém-nascidos para sacrificar em suas missas negras.

É óbvio que os judeus não são as únicas vítimas dos rumores. Um dos mais curiosos e persistent­es teve início também na França, na mesma época, com um sujeito acometido por uma dor de dentes. O dentista que o atendeu revelou que o problema era causado por um ossinho de rato que ficara preso entre dois dentes. “É o quarto caso neste mês”, comentara o dentista. Todos frequentav­am restaurant­es chineses.

No Brasil tivemos um caso especialme­nte lamentável. Em março de 1994, o casal Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, donos da Escola Base, destinada à educação infantil, foram acusados de pedofilia num concerto de mentiras que envolveu policiais, membros do Ministério Público e vários jornais. Antes que o casal fosse inteiramen­te inocentado, a Escola Base já havia sido depredada por vândalos.

Um dos boatos recorrente­s na periferia das grandes cidades brasileira­s dá conta de uma Kombi pilotada por um palhaço, que atrai crianças para roubar seus rins. Dias mais tarde os cadáveres são encontrado­s em terrenos baldios com um corte por onde foram retirados os órgãos. A impossibil­idade médica de iniciar um transplant­e com um doador escolhido ao acaso por um palhaço no interior de uma Kombi não impede a persistênc­ia da história de terror.

Os exemplos apontados acima bastam para que se note a dificuldad­e da tarefa da grande imprensa na sua luta contra as

fake news. Para desfazer uma

fake news é preciso mencioná-la e se a correção não for feita com muita habilidade corre-se o risco de tentar apagar o fogo com gasolina. Leitores de fake news costumam sacar palavras isoladas, à procura de qualquer coisa que venha confirmar opiniões preconcebi­das. Se algo parece contrariá-los, buscam desconside­rar a argumentaç­ão afirmando que “não há fumaça sem fogo” ou que o desmentido foi escrito por alguém vendido a grupos interessad­os.

Esse contra-argumento tem sido muito usado em anúncios de drogas miraculosa­s à base de plantas capazes de fazer qualquer pessoa perder oito quilos em duas semanas, sem dieta. Afirmam que a fórmula permanece em segredo pela pressão dos médicos, temerosos da concorrênc­ia. De maneira análoga, quem desmente o boato de que vacina tríplice provoca aumento do número de casos de autismo se vê acusado de cúmplice dos laboratóri­os multinacio­nais. Há casos extremos em que um desmentido mal-intenciona­do serve para criar um boato do nada. Conta-se que um jornalista de um tabloide de escândalos inglês telefonou para a esposa de um político influente para perguntar se seu marido era homossexua­l. Ante a negativa veemente, publicou a manchete: Fulana de tal, indignada: ‘Meu marido não é homossexua­l!’.

Na impossibil­idade de desmentir individual­mente todas as fake news, procura-se alertar o público para checar a verossimil­hança e a origem das notícias.

Um passeio pela internet revela, por exemplo, que os australian­os não existem realmente: são robôs. A descoberta foi divulgada por uma conferênci­a organizada em Londres pela Internatio­nal Flat Earth Society, fundada em 1956, que como o nome indica reúne pessoas que acreditam que a Terra é plana.

Casos como esses são fáceis de descartar, mas há também notícias com todas as caracterís­ticas de fake news que se revelam verdadeira­s. As primeiras histórias sobre famílias judias, homens, mulheres e crianças, levadas para câmaras de gás em campos de extermínio foram recebidas por muitas pessoas cultas e bem-intenciona­da através do mundo com o descrédito merecido pela propaganda de guerra. Na vanguarda das artes e das ciências, a Alemanha de Goethe nunca poderia permitir bestialida­des dessa ordem. No entanto, era tudo verdade.

Um passeio pela internet revela que os australian­os não existem, eles são robôs

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