O Estado de S. Paulo

Rio abre mostra ‘Queermuseu’

Censurada em 2017, traz obras sobre corpo e sexualidad­e

- Roberta Pennafort / RIO

Há 11 meses, quando o Santander Cultural cancelou, em Porto Alegre, a Queermuseu: Cartografi­as da Diferença na Arte Brasileira, a exposição virou alvo de comentário­s depreciati­vos de quem jamais a visitara. Nas Cavalariça­s da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, no Rio de Janeiro, a partir deste sábado, 18, o público poderá finalmente conhecer as obras de artistas canônicos, como Volpi, Guignard, Lygia Clark e Portinari, e também nomes emergentes e marginais.

Pressionad­a também na cidade – o pastor Silas Malafaia, da Associação Vitória em Cristo, provocou o Ministério Público por acreditar que a “arte queer busca destruir valores judaicocri­stãos” –, a mostra, de recorte inédito, será reaberta com o aviso de que seu conteúdo tem “representa­ções de nudez, sexo e simbologia religiosa”, e que se recomenda que menores de 14 anos sejam acompanhad­os dos pais ou responsáve­is. A orientação foi do próprio Ministério Público.

“É uma vitória para a sociedade brasileira, depois da censura e dos ataques à liberdade de expressão. Não se aceita o cresciment­o do fundamenta­lismo no País”, comemora o curador, Gaudêncio Fidelis, que, ao defender a mostra de acusações de “apologia à pedofilia e zoofilia” e “vilipêndio de signos religiosos” (todas refutadas pelo MP gaúcho), chegou a receber ameaças de morte. “Foi gravíssimo o que aconteceu. Não fosse sua força artística, a Queermuseu não teria ganhado essa dimensão. Abriu-se um debate profundo sobre gênero e sexualidad­e numa escala que ainda não se tinha visto.”

Trata-se da primeira exposição autointitu­lada queer da América Latina, viabilizad­a graças ao sucesso de uma campanha de financiame­nto coletivo – virou uma das mais rentáveis vaquinhas virtuais do País, com mais de R$ 1 milhão arrecadado –, e de um leilão com doação de artistas e show de Caetano Veloso.

A mostra problemati­za questões da expressão e da identidade de gênero e da diversidad­e sexual na arte feita por aqui de

meados do século 20 até hoje, sob uma curadoria que provoca atritos entre conceitos preconcebi­dos.

A bússola aponta para além da definição do termo em inglês, relativo a pessoas que não se enquadram na binaridade homem-mulher, e que podem se intitular LGBTQs ou não. Não há didatismo nem sequência cronológic­a nas pinturas, esculturas, vídeos, cerâmicas, fotos e objetos. Oferecem-se estranheza, ruptura, confronto e também convivênci­a.

Encontram-se Sandro Ka, que se coloca como artista queer, outros que abordam temas desse universo, como Nino Cais, Cibelle Cavalli Bastos e Rodolpho Parigi, e itens de museus (Pinacoteca, Masp, Margs), numa proposta de novos diálogos. Um exemplo: as telas Cruzado Jesus Cristo com

Deusa Shiva, de Fernando Baril, em que a figura cristã tem os vários braços da indiana, junto ao Cristo de Guignard e ao São

Sebastião de Volpi. Outro: Et verbum, uma mala cheia de hóstias, de Antonio Obá, e os estudos em grafite de um corpo masculino de João Faria Vianna.

Com mais de 223 obras de 85 artistas, a Queermuseu ficou apenas 26 dias em cartaz em Porto Alegre, e depois foi censurada novamente, pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella (que é da Igreja Universal do Reino de Deus). Ele desautoriz­ou decisão do Museu de Arte do Rio, municipal, quando a instituiçã­o se dispôs a recebêla. Diante da negativa, a Escola de Artes Visuais do Parque Lage logo se prontifico­u a organizá-la.

“A polêmica já foi superada. Está demonstrad­o que grupos radicais difundiram fake news sobre a mostra. Para a EAV, é um momento histórico, de luta contra o obscuranti­smo”, festeja o diretor da escola, Fabio Szwarcwald. “Acreditamo­s que teremos público recorde, entre 40 mil e 50 mil por mês; está todo mundo curioso.”

Um núcleo de ação educativa realizará performanc­es e debates, tendo como temas teoria queer, representa­tividade e tolerância religiosa, com LGBTQs entre os participan­tes, e discutirá questões levantadas pelas obras com o público.

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FABIO MOTTA/ESTADÃO Mostra. Menores de 14 anos devem ir junto com pais ou responsáve­l

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