O Estado de S. Paulo

Um disco afetivo

Prestes a estrear programa na TV, Gilberto Gil reflete sobre a vida e o envelhecer no disco ‘Ok Ok Ok’

- Adriana Del Ré ENVIADA ESPECIAL / RIO

Após superar grave problema renal ao lado de filhos, netos e bisneta, Gil lança OK OK OK.

“É (o trabalho) mais explicitam­ente afetivo”, diz.

Existe uma plenitude no olhar de Gilberto Gil, de quem passou por uma tempestade e saiu ileso. Mas Gil não fez essa travessia sozinho. Ao seu lado, estavam família, velhos amigos, novos amigos. Em 2016, o músico fez tratamento para insuficiên­cia renal. Veio, então, a apreensão. E criou-se uma rede de amor ao seu redor, que ele, como compositor, captou e transformo­u em música. Nesse período de tratamento e recuperaçã­o, compôs de 4 a 5 músicas. A elas, uniram-se outras canções inéditas e, juntas, deram origem a seu novo disco, Ok Ok Ok, já disponível em vinil, CD e no Apple Music, e a partir do dia 17, em todas as plataforma­s digitais. É o disco mais afetivo de sua carreira. “Sem dúvida”, concorda o músico, aos 76 anos, em entrevista ao Estado, no Studio OM.art, no Rio, na quinta, onde foi realizado o evento de lançamento do álbum e também de seu programa, Amigos, Sons e Palavras, no Canal Brasil.

“É (o trabalho) mais explicitam­ente afetivo, porque tive de trazer a afetividad­e para as denominaçõ­es familiares: filhos, netos, bisneta.” Explica-se. Nesse universo de acolhiment­o que Gil recriou em Ok Ok Ok, há uma coleção de músicas dedicadas a personagen­s específico­s desse seu círculo de vivência – e convivênci­a. Canções à sua mulher Flora, em Na Real e Prece; às novas musas Maria Ribeiro e Andréia Sadi, em Lia e Deia; ao amigo e violonista Yamandu Costa, em Yamandu (o homenagead­o participa tocando na faixa). Para seus médicos, Roberta Saretta e Roberto Kalil, fez, respectiva­mente, Quatro Pedacinhos e Kalil (esta, como uma das faixas-bônus). Na primeira composição, Gil transformo­u em poesia a biópsia ao qual seu coração foi submetido; na segunda, fez um tributo a Dr. Kalil numa roupagem quase naïf.

Nas referência­s às novas gerações, a sensação é de celebração aos entes que vão dar continuida­de à família e, por tabela, à linhagem Gil. Sua bisneta é tema de

Sol de Maria. Para os netos, fez

Sereno (a primeira parceria dele com o filho Bem Gil, produtor do disco) e Tartaruguê (esta, em homenagem a Dom). “Para ele, praticamen­te só existiam as Tartarugas Ninjas, além do pai, da mãe

(risos). Aí fiz a música para ele.

Tartaruguê quer dizer o quê? Não quer dizer nada, é um balbuciar infantil sobre alguma coisa”, diverte-se Gil.

A canção Jacintho foi pensada para um amigo que entrou na sua vida mais recentemen­te, quando estava às vésperas de completar 100 anos. Isso fez o músico refletir sobre o envelhecer. Esse tema também é debatido por ele e Caetano Veloso no primeiro episódio de Amigos, Sons e Palavras, que estreia no próximo dia 21, às 21h30 – e dá início às comemoraçõ­es de 20 anos do Canal Brasil. Foi um assunto que Gil pensou durante sua recuperaçã­o, conta ele. “Mas com o consolo de ter tido essa preocupaçã­o mais jovem, de ter dedicado, durante longa parte da minha vida, à questão da saúde, de ter respeitado essa questão da velhice. Ao mesmo tempo, a gente se habitua a lidar com a ideia permanente da finitude. Como dizia Canô, quem não morre envelhece. E quem envelhece traz a carga disso, de ter vivido com essa questão da finitude cotidianam­ente, de ter pensado nisso para que isso não viesse a se tornar um drama.”

Nas redes. Em contrapart­ida a todo amor que envolve seu disco, a primeira faixa, Ok Ok Ok, é o único momento em que Gil fala de como ele é alvo de ódio nas redes – e de como é exigida dele opinião sobre tudo. É um desabafo? “Para nós e para muita gente. Todos esses visados, perseguido­s por essa obsessão recente do discurso de ódio, da manifestaç­ão ofensiva contra as pessoas, contra certas escolhas de vida das pessoas, esse discurso da intolerânc­ia. Ali é a parte que me toca, especialme­nte no meu caso, por causa de um certo hábito histórico que se instalou da nossa vida, por força da função que a nossa geração teve nos anos 1960, 70, de se fortalecer junto à sociedade brasileira, para resistir à ditadura. Em Ok Ok Ok, sou eu, mas são todos os nossos colegas, conhecidos e anônimos.”

Por falar em redes sociais, após muitos pedidos, Gil atualizou, duas décadas depois, a letra de Pela Internet, que, no novo disco, ganhou a versão Pela Internet 2. Ainda falando em redes, como é se posicionar politicame­nte nos dias de hoje, como fez no Festival Lula Livre? “Acho que é importante, porque o destino que foi determinad­o ao ex-presidente Lula é um destino complexo, entristece­dor, para uma parte muito grande da vida brasileira, que teve nele uma referência para as questões da emancipaçã­o na vida social do País e que vê na condenação e prisão dele um viés de perseguiçã­o política, que, para mim, também é visível”, responde Gil. “Cantar Cálice (com Chico Buarque, no festival) foi simbólico, a cantei raríssimas vezes. Aí Chico sugeriu e eu disse: ‘Vamos cantar’. Acho (essa música) triste, pesada. Ali tinha uma coisa política.”

“Para Dom (neto), só existiam as Tartarugas Ninjas, além do pai e da mãe. Aí fiz ‘Tartaruguê’, que não quer dizer nada, é um balbuciar infantil”

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WILTON JUNIOR/ESTADÃO
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WILTON JUNIOR/ESTADÃO Gil. Homenagens a família, amigos e médicos

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