O Estado de S. Paulo

A medalha de Assad

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO /

Americanos, britânicos e franceses atacaram a Síria do presidente Bashar Assad para puni-lo por usar gases letais contra seus oponentes. Agora, ficamos sabendo que o presidente Emmanuel Macron já havia iniciado um processo para tirar, do mesmo Assad, a Grande Cruz da Legião de Honra.

Para os franceses, a notícia é incrível. Em primeiro lugar, ninguém sabia que o tirano de Damasco tinha esse privilégio: portar a mais alta distinção francesa, criada em 1810 pelo imperador Napoleão Bonaparte. Se, de uma parte, a lista de franceses condecorad­os é divulgada normalment­e, de outra, o público não sabe quais estrangeir­os foram merecedore­s de tal honra. O que cria situações absurdas. Homens como o italiano Benito Mussolini, o ditador romeno Nicolae Ceausescu e o déspota africano Omar Bongo também foram titulares da Grande Cruz.

Como poderia Assad ser condecorad­o sem que o fato fosse divulgado? A história remonta a 2001. Na França, o presidente é Jacques Chirac, um bravo sujeito. Em Damasco, a Síria mal emerge do reinado do pai de Bashar, Hafez Assad, que morreu no ano anterior, depois de ter instalado na Síria o regime do medo.

Na época, Bashar parecia um bom rapaz. Aos 36 anos, ele não tinha experiênci­a, mas tinha ideias liberais e até humanístic­as. Ele era tão gentil quanto seu pai era mau. Foi então que, na mente engenhosa de Chirac, nasceu uma bela ideia: ele faria desse bom jovem seu protegido, garantiria um apadrinham­ento internacio­nal que poderia, assim, beneficiar a Síria com reformas liberais, descanso e alegria.

Para começar, Chirac condecorou Bashar com a Legião de Honra. Mas a entrega da condecoraç­ão foi feita rapidament­e e sem publicidad­e. Em um canto obscuro do suntuoso Palácio do Eliseu, Chirac discretame­nte colocou o grande colar em volta do pescoço do bom jovem. Um feito. A França, que sempre teve grandes interesses na Síria, “colocou em seu bolso” o líder sírio. Chirac fizera uma jogada hábil.

Em Damasco, porém, a abertura política foi um fechamento. Nem reformas liberais, nem liberaliza­ção da economia. Em vez disso, renovou um sistema “mafioso” e a Síria cedeu a seu prazer oculto: assumir o controle do vizinho Líbano. De fato, em 2005, o então primeiro-ministro libanês, Rafic Hariri, foi assassinad­o em Beirute. Todas as atenções voltam-se para Damasco.

Chirac ficou furioso. Seu protegido simplesmen­te estava no comando. Além disso, Hariri era seu amigo. O bom Chirac estava indignado. Sua cólera o consumia. Entre França e Síria, a ruptura – que não duraria muito, porque Chirac deixaria o cargo.

Chega ao Eliseu outro gênio, Nicolas Sarkozy, que “fuma o cachimbo da paz” e faz de Assad convidado de honra na parada de 14 de julho de 2008. Isso quer dizer que Sarkozy tinha na cabeça uma grande ideia: a França assumiria a liderança na criação de uma união para o Mediterrân­eo. Naturalmen­te, tudo dá errado rapidament­e.

Em 2012, chega um novo presidente, François Hollande, mais informado que os outros. Então, veio Macron, que gosta de conversar com todos, até mesmo com o diabo, para tentar convertêlo. “É preciso falar com Bashar”, disse Macron, em dezembro. Três meses depois, nada. Enviamos bombas.

Essa visão geral prova que a “diplomacia da Legião de Honra” pode ter seu charme, mas seus encantos são voláteis. É por isso que o Estado não faz publicidad­e dos estrangeir­os que condecora. Eles têm a maior aparência de honestidad­e, mas matam oponentes e jogam outros na cadeia.

Por exemplo, antigament­e, o general Francisco Franco foi condecorad­o. Então, um grupo foi formado na França para que a Legião de Honra fosse retirada dele. Impossível. A condecoraç­ão pode ser confiscada de alguém “vivo”, não de uma “pessoa morta”.

Além dos ditadores mais conhecidos, há outros dos quais ninguém fala, porque reina o sigilo. Não parece, porém, que a medalha de Napoleão tenha sido oferecida a Stalin ou Hitler. Ufa! Escapamos. Caro Harvey Weinstein, produtor de Hollywood que tanto ama as meninas, sua Legião de Honra está por um fio.

É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

Chirac deu a Bashar Assad a Legião de Honra da França, mas não contou para ninguém

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