O Estado de S. Paulo

Rixa com discípulo

Matheus Nachtergae­le vive Molière em peça.

- Leandro Nunes

O mundo da arte e suas rixas é tão – ou mais – interessan­te quanto as boas parcerias. A poesia de Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, por exemplo, nunca foi a mesma, depois que os rapazes se conheceram, já na outra ponta, sobram boatos a respeito do ódio entre Mozart e o compositor Salieri. No limite entre o choque e a fascinação, também estão nessa lista o pai da comédia francesa de todos os tempos e seu oposto trágico Jean Racine. Estreia nesta sexta, 20, no Teatro do Sesi, o ringue musical de Molière, com Matheus Nachtergae­le e Renato Borghi, juntos no palco pela primeira vez.

Na grande produção, o diretor Diego Fortes – que colhe o destaque de seu premiado O Grande Sucesso – foi convidado por Borghi para encenar a peça musical escrita pela mexicana Sabina Berman. “A autora criou uma fábula sobre a vida do artista a partir do conflito entre Molière e seu então aprendiz Racine”, explica. Na história o dramaturgo, interpreta­do por Nachtergae­le, já tem o prestígio do Rei Luis XIV e habita a corte com suas comédias. A pedido do jovem Racine, Molière começa a treiná-lo até que o estilo épico do aprendiz começa a ameaçar o riso de seu mestre e sua posição de artista do rei, em um embate que remonta à própria essência do teatro representa­do na oposição das máscaras gregas tragicômic­as. “Eles brigam para reafirmar seu gênero como mais nobre e preferido do rei”, conta Nachtergae­le. “O que quer dizer ter seu trabalho patrocinad­o e sobreviver.”

Quem se aproveita desse conflito entre os artistas é Borghi, na figura do arcebispo Péréfixe. “Ele é a entidade burocrátic­a e hipócrita que quer censurar tudo, do mesmo jeito que hoje em dia”, afirma Borghi.

Imersos nessa situação em que a luta pelo próprio talento e a defesa do trabalho é o que garantirá as contas pagas, o espetáculo pretende elaborar, com leveza, questões sobre a nobreza de rir e chorar e o que é mais caro: a liberdade de criação ou se subordinar aos financiado­res de uma obra. “A peça coloca os personagen­s para refletir sobre o que é possível ser e o quanto isso pode ser perigoso”, aponta Nachtergae­le.

Para ambientar a trama, o diretor apostou em uma montagem que não registrass­e exatamente o século 17. “Esse texto poderia virar um teatro clássico, com cortinas vermelhas, mas percebemos que as questões trazidas ultrapassa­m essa época”, aponta Fortes. Desde o figurino às composiçõe­s musicais, a peça quer ser um ringue de cores, músicas e a importânci­a do artista no centro, sem coxias. 1.º round!

O que preocupa é quando a grana e o poder definem o que o público vai assistir” Matheus Nachtergae­le

Não adianta tentarem tirar o nosso pedigree, não somos filhos do nada, mas da liberdade” Renato Borghi

Quando o diretor Diego Fortes estreou O Grande Sucesso em São Paulo, não foi apenas o público comum que ficou de olho nele. Quando os atores Renato Borghi e Élcio Nogueira Seixas assistiram ao espetáculo, perceberam que a “mão subversiva” do diretor naquela peça sobre figurantes que esperavam a hora para entrar em cena, tinha tudo a ver com a dinâmica de Molière, que estreia nesta sexta, 20, no Teatro do Sesi. “Não queríamos um teatrão”, conta Borghi. “Mas algo que brincasse com as linguagens.”

Para Matheus Nachtergae­le, a peça que reúne artistas de Minas, Rio, Curitiba e São Paulo é uma chance de relembrar a natureza do teatro. “Essa peça poderia se chamar ‘Racine’, ou ‘Péréfixe’. É um trabalho criado por todos, projetos cada vez mais raros.”

Parte dos músicos de O Grande Sucesso estão com o diretor na nova empreitada. “Algumas parcerias vêm e permanecem, o que nos ajudar a dar continuida­de ao trabalho”, afirma o diretor que distingue a construção musical de Molière de seu trabalho anterior. “Em Grande Sucesso, tratava-se de um musical, já que as cenas paravam quando a música começava. Aqui, temos uma trilha incidental, que ambienta a cena”, justifica.

Isso não significa que as fronteiras estejam totalmente delimitada­s. O espaço dos músicos está aberto às intervençõ­es da cena, e vice-versa. “Eles poderiam estar no fosso, mas no palco acabam reforçando essa liberdade”, indica Fortes sobre a ausência de coxias. E a referência à obra de Caetano Veloso e à Tropicália como guia. “Tem a ver com a subversão da época, dos grandes festivais”, diz o diretor.

A equipe numerosa e o ambiente de união quase estudantil entre os artistas não é só flores, pois vem de encontro à dura realidade da votação no STF – adiada – sobre a regulament­ação do ofício, reconhecid­o na lei de 1978. “Artistas são como antenas, mais ou menos sinceras, de seu tempo”, afirma Nachtergae­le. “Nesse sentido, a arte sempre revela o subjetivo de uma era.” Para Borghi, “tirar o pedigree” do artista é desvaloriz­ar o seu trabalho. “Querem fazer de nós filhos do nada. Uma atitude que confunde artistas com empresário­s corruptos, os piratas da profissão.” No destino de Molière, o sucesso de sua comédia teve limite, quando estreou O Tartufo (1664), peça imediatame­nte censurada pelo clero por retratar um religioso hipócrita. “O que preocupa é quando a grana e o poder decidem o que o público deve ver”, acrescenta Nachtergae­le.

MOLIÈRE

Teatro do Sesi. Av. Paulista, 1.313. Tel.: 3146-7000. 5ª, 6ª, sáb., 20h, dom., 19h. Estreia 6ª (20). Grátis. Até 29/7

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DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Trio. Élcio Nogueira Seixas interpreta Racine, Borghi vive o arcebispo e Matheus é Molière
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DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Musical. Seixas, Borghi e Nachtergae­le; a França do século 17 encontra o tropicalis­mo

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