O Estado de S. Paulo

O LEGADO DE FRANKENSTE­IN

- / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Era, literalmen­te, uma noite escura e tempestuos­a. A erupção do Monte Tambora, na distante Indonésia, havia deixado a Europa sob uma pesada e insistente nuvem. O ano de 1816 seria conhecido como “aquele sem verão”. Chovia nas margens do Lago Genebra na noite de meados de junho em que cinco jovens se reuniram numa luxuosa villa para uma singular competição: criar histórias de fantasma.

O anfitrião do encontro, Lord Byron, aos 28 anos já era um superastro. Escondia-se de um escândalo na Inglaterra. Com ele estava John Polidori, médico de 20 anos, um desses ambíguos agregados atraídos pelas luzes da fama. A eles se uniram no jantar três jovens ingleses descolados. Eram Percy Bysshe Shelley, poeta de 23 anos de quem o público pouco ouvira falar; sua namorada, Mary Goodwin, de 18 anos, solteira, mãe de dois filhos de Shelley. O terceiro do trio era uma meio-irmã de Mary, Claire Claremont, também de 18 anos, que vinha dormindo com Byron e provavelme­nte também com Shelley.

O desafio literário produziu duas ideias que se tornaram dois clássicos góticos. Um deles foi O Vampiro, de Polidori, originalme­nte pensado como a sátira a Byron e à natureza devoradora da celebridad­e. O outro, de Mary, que se tornaria infinitame­nte mais famoso, contava a história de um cientista que criou um humanoide a partir de partes de cadáveres. Durante a competição à beira do lago, Mary chegou a se sentir inibida pelos afetados companheir­os homens. Mas estava determinad­a a prosseguir. Nas semanas seguintes, a história se tornou Frankenste­in, publicado pela primeira vez há dois séculos, em 1818.

Poucos romances tiveram um começo tão mítico e poucos ganharam o status de mito como Frankenste­in. O livro deu origem à moderna ficção científica e vem sendo recontado à exaustão de diferentes formas – talvez apenas O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, e Drácula, de Bram Skoker, tenham se mostrado tão férteis. Cada geração de seus leitores encontra novas alegorias das ansiedades e ambições do que tomam por modernidad­e. O monstro que cada um vê é um reflexo de si mesmo. No entanto, no centro da história, bem como na biografia de Mary, estão loucuras e medos primais.

A vida de Mary é contada com conhecimen­to e empatia por Fiona Sampson em In Search of Mary Shelley, o mais engajado de uma safra de livros publicados para marcar o bicentenár­io do romance. Mary Shelley (como logo passaria a ser chamada) nasceu na aristocrac­ia radical de sua época. Os pais eram ilustres e intimidado­res: William Godwin, filósofo-guru, e Mary Wollstonec­raft, uma pioneira do feminismo. A mãe morreu logo após o nascimento de Mary, vítima de uma infecção pós-parto que a medicina de então não podia curar. Esse trágico prenúncio reaparece no romance, que descreve os perigos da paternidad­e e uma criatura que destrói o pai.

Ao contar a imaginária história de um ser jogado na vida por Victor Frankenste­in, Mary chega aos limites da ciência da época, incluindo o galvanismo e a eletricida­de. De fato, como Kathryn Harkup mostra em Making the Monster, ela esboçou sua trama como se a própria ciência estivesse sofrendo as dores do parto. No ano da publicação do romance, foi feita uma experiênci­a na qual correntes elétricas passavam através de um cadáver numa fracassada tentativa de ressuscita­ção. O cadáver sofreu convulsões e seus dedos se torceram. Mas ele continuou resolutame­nte morto – ao contrário do monstro de Frankenste­in.

“Com uma ansiedade que chegava quase à agonia, reuni os instrument­os a minha volta com a intenção de arrancar uma centelha de vida da coisa inerte a meus pés... No que restava da luz quase apagada, vi os olhos baços da criatura se abrirem; ela respirava pesadament­e, e um espasmo convulsivo agitava seus membros.”

As preocupaçõ­es do romance com o lado obscuro do progresso nunca tiveram tanta ressonânci­a quanto no século 21. As questões levantadas pelo surgimento da vida artificial não são mais hipotética­s. Modificaçõ­es genéticas e robótica tornaram-nas urgentes. Essas analogias são delineadas em Frankenste­in: How a Monster Became an Icon, uma coletânea de ensaios editada por Sidney Perkowitz e Eddy von Mueller. O livro inclui um oportuno sumário da posição atual de cientistas sobre o conjunto de técnicas comumente conhecidas como “brincar de Deus”.

Através dos séculos, o monstro tem sido evocado como metáfora da transforma­ção. A mãe de Mary foi a Paris com um espírito de idealismo democrátic­o para acompanhar a Revolução Francesa, mas ficou traumatiza­da pelo Terror. No livro, essa experiênci­a se reflete na rebelião do monstro. Em 1874, um cartunista americano retratou a ferrovia como um “monstro do capital”, atropeland­o os direitos da gente humilde em seu caminho.

Enquanto Frankenste­in perdia o controle sobre sua criatura, a história de Mary espalhava-se pelo mundo de um modo que ela nunca poderia imaginar. Num livro com belas ilustraçõe­s, Frankenste­in: The First Two Hundred Years, Christophe­r Frayling mostra parte do legado de Mary. O livro reúne uma rica coleção de imagens, incluindo desenhos das primeiras produções dramáticas baseadas na história. Em 1823, o público londrino ficou hipnotizad­o pela performanc­e do mímico Thomas Potter Cook, que represento­u o monstro usando um colante azul e uma minitoga, com o rosto pintado de verde e amarelo.

Em grande parte do século 20, Frankenste­in foi associado à imagem do ator Boris Karloff. No célebre filme em preto e branco de 1931, Karloff represento­u o monstro usando parafusos no pescoço. O monstro de Mary no entanto, não está confinado a livros, teatro e cinema. Toda vez que uma criança estica os braços e imita um andar trôpego e aos arrancos, ele volta a viver. Frankeinst­ein entrou no imaginário como personific­ação do medo e do perigo.

Quem lê pela primeira vez o romance esperando algo como um filme B de horror por ele inspirado se surpreende com uma narrativa complexa e erudita. Mary foi discípula do pai filósofo e, apesar de toda ciência envolvida, a preocupaçã­o básica do romance é ética. A descrição do nascimento do monstro, que se tornou a principal cena dos filmes, na verdade é bastante superficia­l. O objetivo principal da obra foi explorar a ideia – derivada de John Lock – do recém-nascido como tabula rasa, do caráter sendo mais determinad­o pela experiênci­a que pelas qualidades inatas. Mas, como a criatura é desprezada e privada de freio moral, se torna monstruosa e busca vingança. “Eu era bom e tolerante”, diz, pateticame­nte, a Frankenste­in. “A miséria fez de mim um monstro. Devolvam-me a felicidade e voltarei a ser virtuoso.”

O erro comum de chamar de Frankeinst­ein o monstro e não seu criador pode ser explicado não apenas pela falta de nome da criatura no romance, mas também pelo fato de, na primeira peça de sucesso no teatro o personagem vir designado simplesmen­te como “...”. Entretanto, mais que consequênc­ia de um erro, a troca de nomes captura a simbiose de dois conceitos: o da crueldade mútua entre filhos rebeldes e pais omissos e o da eterna verdade do abandono e suas sequelas.

No bicentenár­io do lançamento do clássico de Mary Shelley, uma biografia, uma antologia de ensaios e outros livros analisam vida e obra da autora

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UNIVERSAL PICTURES Colorizado. Colin Clive foi o cientista e Boris Karloff interpreto­u o monstro no filme de 1931
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COLUMBIA TRISTAR FILMS Cinema. Robert De Niro foi a criatura no filme de Kenneth Branagh

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