UMA SOCIEDADE ANÔNIMA ENTRE O AUTOR E SEUS LEITORES
Numa situação hipotética, na qual o autor tivesse certeza absoluta de que nunca seria lido, será que escreveria uma vírgula que fosse? Salvo honrosas e kafkianas exceções, provavelmente não. Afinal, são dois lados da mesma moeda. Já Umberto Eco assinalava uma questão crucial: a cada leitor o escritor entrega uma mensagem privada. De fato, o escritor só escreve metade do livro – a outra metade quem escreve é o leitor. Daí que o crítico Edmund Wilson lacrou: “Nunca dois leitores leram o mesmo livro.”
Toda obra de ficção é um pacto tácito entre escritor e leitor: o primeiro finge que aquilo que está contando é verdade, e o segundo finge que acredita. É certo que a autoficção (ao equiparar autor, narrador e protagonista) e a metaficção (ao brandir seus códigos) proclamam repudiar esse pacto, mas no fundo só de mentirinha.
Na obra do escritor argentino Alberto Manguel a especialidade da casa é precisamente uma hermenêutica do leitor. Os Livros e os Dias, por exemplo, consiste em um diário da releitura de um romance por mês ao longo de um ano (de 2002 a 2003). E O Leitor Como Metáfora corresponde assumidamente a um puxadinho de uma obra anterior, Uma História da Leitura.
Manguel mobiliza três metáforas para classificar o leitor. A primeira é o viajante. É também a mais imanente à própria estrutura da narrativa de ficção, na qual um protagonista sai – literal ou simbolicamente – da sua zona de conforto, numa jornada que vai de A a B, culminando num novo status quo. Manguel disseca obras canônicas, como o épico mesopotâmico Gilgamesh, uma das narrativas mais antigas da literatura universal. Ou a Divina Comédia, cuja jornada já começa pelo meio (in medias res): “No meio caminho da minha vida, me encontrei perdido numa selva escura.” Dante escreveu-a quando era um exilado político, outra modalidade de errância muito praticada por autores de todas as épocas. Galileu Galilei, o primeiro paradigma do cientista moderno, chegou a dar duas palestras sobre a localização e o tamanho do Inferno de Dante.
Para Manguel, a leitura itinerante na globalização da internet é uma faca de dois gumes: “Parece não requerer deslocamento – tudo está aqui o tempo todo, ao toque de um dedo. Não precisamos viajar em direção a nada, porque tudo aparece de repente, não precisamos registrar nada na memória porque nossas memórias realizam essa tarefa por nós.” Mas só a memória pessoal, ontológica, é realmente inesquecível.
O leitor viajante pede carona, por exemplo, às “road novels”. Da Odisseia a On the Road. Não apenas os temas se deslocam, mas os autores – Kazuo Ishiguro é um romancista britânico nascido no Japão. O irlandês Samuel Beckett escrevia ora em inglês, ora em francês – e depois se traduzia para estas duas línguas. Um dia confessou que já não sabia qual era o original e qual era a versão. Autores criam geografias ficcionais, como as Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, ou o condado faulkneriano de Yoknapatawpha.
A segunda metáfora para o leitor é a da “torre de marfim”, expressão criada em 1837 pelo crítico francês Sainte-Beuve sem qualquer conotação pejorativa. Com o tempo, assumiu um sentido negativo, de sedentarismo esteticista, pedante e alienado, um amigo da arte pela arte e por isso inimigo do povo. Manguel desarma o reducionismo dos rótulos, indicando que uma das barbadas para maior personagem de todos os tempos – Hamlet, com sua relutância entre ser ou não ser – transfigurou a torre de marfim numa espécie de trailer.
O ensaísta nota que ensimesmamento pode significar profundidade. “Numa época em que os valores que a nossa sociedade apresenta como desejáveis são os da velocidade e da brevidade, o lento e reflexivo processo da leitura é visto como ineficiente e antiquado. A leitura eletrônica não parece encorajar sessões prolongadas com um único texto, mas incentivar um processo de lambiscar pequenos fragmentos.”
A última metáfora é a da traça, o rato de biblioteca, o leitor glutão, que mais se empanturra que se nutre. Também comporta o idólatra de best sellers – ainda hoje os Correios de Londres recebem cartas para Sherlock Holmes. E, por fim, o leitor que confunde vida e obra e acaba degenerando em personagem, por vezes bem (D. Quixote), por vezes mal (Emma Bovary).
Aliás, o aspecto mais fascinante deste pequeno (148 páginas) grande livro são as encruzilhadas e as bifurcações entre ficção e realidade. Que, memoravelmente, transparecem no paralelismo entre a vida e as viagens: acreditemos ou não que a jornada tem um destino, personagens e leitores e cidadãos, somos todos transeuntes.
Por isso a literatura é uma ponte entre duas irredutíveis solidões: a do autor que escreve, e a do leitor que lê. Ambos acabam customizando uma chegada, ainda que idiossincrática.
Por outras palavras: a literatura não é real, mas pode ser profundamente verdadeira – coisa que o real nem sempre é. Só que, ao contrário da existência empírica, ela é um dispositivo, uma engrenagem – por isso a ficção, de novo diferente da vida, precisa fazer sentido. Seja trágico ou cômico. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)
Os leitores são categorizados em três tipos no novo livro do intelectual argentino Alberto Manguel: o viajante, a torre de marfim e a traça