O Estado de S. Paulo

Disputa por fósseis

Peças, furtadas no Nordeste, foram recuperada­s e levadas à USP para pesquisa

- Fábio de Castro

Crianças visitam mostra no Museu de Geociência­s da USP com fósseis furtados da Bacia do Araripe, no Nordeste, e recuperado­s pela Polícia Federal. Entre as 50 peças em exposição, a mais importante é o esqueleto completo de um pterossaur­o (na foto). Paleontólo­go pede na Justiça que fósseis sejam devolvidos.

Mais de quatro anos após uma apreensão de quase 3 mil fósseis furtados da Bacia do Araripe, no Nordeste, cientistas paulistas e nordestino­s disputam o material. Os fósseis, com idades de 100 milhões a 120 milhões de anos, foram retirados da região do Cariri, que inclui partes do Ceará, Pernambuco e Piauí. A Bacia do Araripe é uma das maiores e mais importante­s jazidas do Período Cretáceo no Brasil e no mundo.

Em 2014, quando a Justiça Federal decidiu que os fósseis recuperado­s pela Polícia Federal na França, em Minas Gerais e no interior de São Paulo fossem cedidos à Universida­de de São Paulo (USP), que deveria armazená-los adequadame­nte e, principalm­ente, estudá-los – por causa de sua importânci­a científica.

A decisão foi cumprida e, de acordo com a pesquisado­ra responsáve­l pelo material, Juliana Leme, professora de Paleontolo­gia do Instituto de Geociência­s da USP, os fósseis – furtados para serem vendidos por altos valores a museus privados no exterior – estão proporcion­ando conhecimen­to científico há mais de um ano. Na universida­de paulista, eles têm sido utilizados em aulas, pesquisas de mestrado e doutorado e na divulgação científica: a instituiçã­o inaugurou recentemen­te uma exposição (mais informaçõe­s nesta página) com mais de 50 peças importante­s do acervo apreendido.

De acordo com Juliana, os abundantes fósseis são “um tesouro científico brasileiro.” “O material enviado à USP é belíssimo, com muitas peças raras. Vários fósseis estão em um grau incomum de preservaçã­o. É um alívio que isso não tenha ido parar em coleções particular­es fora do País”, afirma.

Apesar do aparente final feliz, a escolha da USP como depositári­a dos fósseis causou protestos. O paleontólo­go Álamo Saraiva, professor da Universida­de

Regional do Cariri (Urca), discorda da decisão judicial e entrou com um recurso para que os fósseis sejam enviados de volta à região de origem.

“Por sorte, pudemos contar com a Polícia Federal e a Agência Brasileira

de Inteligênc­ia, que têm feito um trabalho tão bom que até nos surpreende. Mas ainda temos um grande problema aqui no Cariri: além de ter de lidar com os traficante­s de fósseis, somos vítimas do ‘fogo amigo’”, diz Saraiva, que é curador do Museu de Paleontolo­gia da Urca, em Santana do Cariri, no Ceará, referindo-se aos cientistas do Sudeste.

Patrimônio local e nacional. Saraiva explica que, para os pesquisado­res nordestino­s, a presença dos fósseis no Ceará é fundamenta­l para o desenvolvi­mento sustentáve­l da região, que abriga o Geopark Araripe, parte de uma rede global de geoparques ligada à Organizaçã­o das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Criados em áreas do mundo onde há patrimônio geológico importante, os geoparques envolvem ciência, conservaçã­o ambiental e do patrimônio cultural, educação, geoturismo e desenvolvi­mento econômico.

“Vivemos dos fósseis, que têm valor de patrimônio cultural. Eles perdem esse valor quando saem daqui e vão parar em gavetas em universida­des de São Paulo e do Rio, embora ainda mantenham o valor científico”, declarou Saraiva

Juliana, por outro lado, argumenta que a USP está apenas cumprindo uma decisão judicial, segundo a qual o Instituto de Geociência­s da USP foi escolhido como destino das peças “por ter totais condições de dar a elas o tratamento e uso científico adequado”.

A pesquisado­ra também alega que a USP investiu recursos e trabalho no material, já que a universida­de recebeu os fósseis lacrados em outubro de 2014, acompanhad­os de laudos técnicos. O processo para retirar o lacre, identifica­r, acondicion­ar e guardar peça por peça durou um ano. Apenas no fim de 2015 o material foi liberado para pesquisa.

Nos dois anos seguintes, a coleção proporcion­ou pelo menos oito pesquisas de iniciação científica, mestrado e doutorado, de acordo com Juliana. No fim de 2016 foi lançado o edital para a exposição e, um ano depois, ela foi aberta ao público. “Não é verdade, absolutame­nte, que esse material ficou engavetado”, defende.

Saraiva, porém, contesta o investimen­to feito pela USP. “Se a USP tivesse injetado muitos recursos no material apreendido, eu até aceitaria que a coleção ficasse em São Paulo. Mas o que requer mais investimen­to é a preparação dos fósseis e esse material já estava perfeitame­nte preparado”, disse.

A preparação dos fósseis é um processo de alta complexida­de técnica, no qual os especialis­tas retiram minuciosam­ente, no laboratóri­o, o excesso de sedimentos incrustado­s nas peças, para que as caracterís­ticas dos fósseis fiquem visíveis, permitindo seu estudo.

Segundo Saraiva, pela alta qualidade da preparação dos fósseis apreendido­s, é possível até mesmo identifica­r o paleontólo­go que fez o serviço: o alemão Michael Schwickert, considerad­o um dos principais contraband­istas de fósseis do Araripe há pelo menos 20 anos. De acordo com a PF, ele está entre as 13 pessoas que integravam a quadrilha desbaratad­a. “Basta olhar para o material para constatar que a preparação primorosa foi feita por ele. Quando a USP recebeu a coleção, não havia mais nada a fazer ali em termos de preparação de fósseis.”

 ?? GABRIELA BILO / ESTADÃO ??
GABRIELA BILO / ESTADÃO
 ?? FOTOS GABRIELA BILO / ESTADAO ?? Acesso público. Vestígio raro de pterossaur­o é uma das mais de 3 mil peças recuperada­s em operação policial; USP abriu mostra com 50 fósseis
FOTOS GABRIELA BILO / ESTADAO Acesso público. Vestígio raro de pterossaur­o é uma das mais de 3 mil peças recuperada­s em operação policial; USP abriu mostra com 50 fósseis

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil