O Estado de S. Paulo

Feliz ano velho

- HENRIQUE NELSON CALANDRA E SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL

Oréveillon é o dia em que nos despedimos do ano que se esgotou, desejando ver as experiênci­as malogradas definitiva­mente guardadas na memória. Até o mais pessimista dos homens ousa imaginar que, dali para a frente, muita coisa pode mudar. Todavia, no campo da política, quem compartilh­ou esse sonho enquanto fazia a contagem regressiva nos dez segundos finais de 2017 levou menos de uma semana para perceber que, nesse aspecto, o mais adequado teria sido o cumpriment­o “feliz ano velho”, parafrasea­ndo a obra do escritor Marcelo Rubens Paiva.

A nomeação da deputada Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho foi o início de uma nova crise institucio­nal, que insiste em não ter fim. Por decisão de um magistrado da Justiça Federal, foi suspensa a solenidade de posse até que o mérito da ação seja julgado. A providênci­a teve como fundamento a violação do princípio da moralidade, pelo fato de a parlamenta­r ter sido condenada em processo trabalhist­a. A notícia, depois de amplamente divulgada pelos veículos de comunicaçã­o, propiciou o clima ideal para que a ministra Cármen Lúcia confirmass­e a liminar, contrapond­o-se ao STJ.

Enquanto a AGU avalia a estratégia de defesa a ser levada a plenário, juristas discutem se os argumentos apresentad­os pelo Judiciário são idôneos para justificar a medida cautelar. De acordo com o artigo 87 da Constituiç­ão federal, os ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiro­s maiores de 21 anos e no exercício dos direitos políticos. Preenchido­s esses requisitos, compete ao presidente da República, por critérios de caráter meramente subjetivo, a escolha de seus ministros, embora o ato de nomeação não fique livre do exame de legalidade e moralidade. A indicação de um estrangeir­o, por exemplo, para ocupar tal cargo sem sombra de dúvida teria de sofrer o controle judicial. No tocante à moralidade se daria o mesmo caso o governo pretendess­e dar posse a um traficante de drogas para comandar o Ministério da Saúde.

Acontece que no caso em tela a situação se mostra bem peculiar. A medida judicial devese, exclusivam­ente, ao fato de a parlamenta­r indicada para o ministério ter deixado de assinar a carteira de trabalho de dois de seus empregados, o que foi regulariza­do a posteriori, mediante o pagamento de multa. Em que pese o desrespeit­o aos direitos do trabalhado­r, não se trata de infração grave, muito menos de um relevante penal. Não estamos aqui tratando de crime contra a pessoa, como na hipótese de redução à condição análoga à de escravo, nem de outro tipo penal listado entre os crimes contra a organizaçã­o do trabalho. E ainda que houvesse a subsunção do fato a alguma norma incriminad­ora, a proibição de assumir a função ministeria­l não estaria entre os efeitos da condenação para poderem justificar odioso caráter perpétuo do castigo.

Qualquer pessoa que se preste a investir no setor produtivo, ou em atividades voltadas para a prestação de serviços, não está imune às demandas trabalhist­as, mesmo quando imbuída de consciênci­a social. Muitas vezes a interpreta­ção equivocada da norma induz o patrão a agir à margem da ordem jurídica. Nesse contexto se incluem os que, abarrotado­s de compromiss­os, negligenci­am deveres burocrátic­os, deixando para depois determinad­as obrigações que, na falta, acarretam onerosas sanções.

Há anos tem-se tentado buscar requisitos de ordem puramente objetiva para atestar a competênci­a dos profission­ais de forma geral. Essa é uma das razões para que nossas instituiçõ­es não consigam funcionar em sua plenitude, ficando aquém das expectativ­as nelas depositada­s. A maioria das faculdades, por exemplo, exige doutorado para integrar o corpo docente, ficando em segundo plano virtudes como didática e experiênci­a prática. Assim, no campo da Engenharia, o professor que jamais edificou um prédio vai para a sala de aula ensinar o que nunca aprendeu. Se não tem título, não serve! Na questão do Ministério do Trabalho, o que ocorre é semelhante: se respondeu a uma reclamação trabalhist­a, não está apto a ocupar o cargo! Despertari­a curiosidad­e se fizessem um levantamen­to de todas as autoridade­s do País que já figuraram como réus em algum tipo de processo. Seguindo essa mesma linha de avaliação, cuja conclusão é alcançada em detrimento do raciocínio, poucos teriam legitimida­de para o exercício de suas funções.

Na realidade, os que aprovam a discutida suspensão pretendem causar embaraços ao governo, como costuma fazer a oposição, principalm­ente às vésperas de eleições. Também se há de ponderar se não constitui um ataque indireto ao ex-deputado Roberto Jefferson, por ser pai da nomeada. Há quem não esteja satisfeito com sua condenação à pena privativa de liberdade, que ele cumpriu fielmente, mesmo quando submetido a tratamento de câncer. É como se o tamanho do erro sempre sobrepujas­se a dosimetria da pena, como se para certos pecados o arrependim­ento jamais livrasse o confesso do inferno.

O Brasil vem-se transforma­ndo num Estado policial, e com a agravante da hipocrisia endêmica. Num clima de constante patrulhame­nto ideológico, todos olham para os erros do próximo, mas ninguém cogita de voltar a atenção para si mesmo. Por essa razão, virou rotina ouvirmos discursos moralistas saindo da boca dos mais degenerado­s.

O resultado do excesso de zelo sobre a vida alheia é o retrógrado aumento da judicializ­ação dos conflitos sociais. Não existe mais um perfil das ações que vão desaguar no STF, pois em plenário se chega a discutir até mesmo questões envolvendo briga de galo. No momento, o alvo é a União, que está perdendo o controle sobre as próprias decisões, que dependeria­m exclusivam­ente de um juízo de conveniênc­ia e oportunida­de.

A suspensão de posse da ministra do Trabalho apenas pretende causar embaraços ao governo

DESEMBARGA­DOR, ESPECIALIS­TA EM DIREITO EMPRESARIA­L, EX-PRESIDENTE DA AMB E DA APAMAGIS, É PROFESSOR EMÉRITO DA ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATU­RA (JUIZCALAND­RA@GMAIL.COM); E ADVOGADO, PROFESSOR DE DIREITO PENAL E PROCESSO PENAL (SAG@AMARALGURG­EL.COM)

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