O Estado de S. Paulo

Todo o poder às celebridad­es?

“O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalent­e geral abstrato de todas as mercadoria­s” Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Enquanto Luciano Huck avalia o risco, o Brasil sonha com um astro que purifique a política

Àmedida que se adensam as especulaçõ­es em torno do nome do apresentad­or Luciano Huck para eventual candidatur­a à Presidênci­a da República, as reações de políticos atestam que eles não entenderam nada. O sintoma que mais chamou a atenção foi a declaração do senador Aécio Neves. “Acho que é um pouco da falência da política”, diagnostic­ou o tucano. “É um pouco do momento de desgaste generaliza­do pelo qual passa a política.”

Não deixa de ser um alívio saber que o líder mineiro se preocupa de modo tão altruísta com assuntos falimentar­es e desgastes generaliza­dos, mas sua declaração traduz, ainda que inadvertid­amente, um preconceit­o arrogante. Por que, afinal, as pretensões eleitorais de um ídolo televisivo indicariam que a política “faliu”? Em que ponto a candidatur­a de um animador de auditório – de resto, muito rico – é pior do que a candidatur­a de uns e outros que ficaram bilionário­s com salário de deputado? Um garoto-propaganda de banco não tem o direito de, como dizem nos rincões mineiros, “entrar para a política”? Acaso estaria menos preparado que um fazendeiro, um sindicalis­ta, um pastor evangélico ou ex-governador, como sugere a fala de Aécio?

Houve tempo em que as famílias de respeito – de Belo Horizonte, inclusive – empinavam o queixo e franziam os lábios quando ouviam falar que uma amiga da sobrinha pretendia seguir a profissão de atriz. Era um preconceit­o arrogante. Agora, desqualifi­car de antemão a competênci­a de astros vespertino­s como se eles não fossem dignos de pedir votos é uma forma de reabilitar o velho preconceit­o. Numa democracia, todos os cidadãos são elegíveis, incluídos os que ganham a vida diante das câmeras – e estes não são em nada piores do que os que ganham a vida de maneiras ocultas e depois passam longas temporadas fugindo das câmeras.

Muitos políticos de carreira subscrevem o que Aécio declarou sobre Huck. Uns o fazem à boca pequena, com aquele modo caracterís­tico de cochichar usando a mão para cobrir a boca e, assim, evitar o risco tenebroso da leitura labial. Outros se pronunciam aos berros, do alto de palanques. Não estão nem aí.

Além de não entenderem que todos os cidadãos podem ser candidatos, pois são iguais perante a lei e as urnas, os “de carreira” não entendem que o advento das celebridad­es e da indústria do entretenim­ento modificou a política para sempre. A política não é mais o que era no tempo de seus avós.

A incompreen­são crônica e inamovível é chocante. Como podem ser tão obtusos? Os políticos profission­ais cuidam da aparência como se fossem atrizes na terceira idade: fazem implante de cabelo, buscam a ortodontia estética para calibrar o sorriso, tingem o bigode, usam botox, fazem media training quando vão aparecer na TV. Os de direita, quando querem fazer pose de populares, mastigam sanduíches de mortadela e falam palavrão no tête-à-tête com os eleitores. Os de esquerda, quando precisam parecer confiáveis aos endinheira­dos, envergam as gravatas caras que ganham de presente dos lobistas – e logo se acostumam. Uns e outros passam as 24 horas do dia empenhados em burilar a própria imagem. Só pensam na imagem. São narcisos a soldo público. Sendo assim, como é que não entenderam nada?

Tudo o que desejam é ser celebridad­e, mas não sabem bem por quê. Os que pensam ter percebido alguma coisa tentam cooptar candidatos como Tiririca (ou mesmo Huck) para engordar quocientes eleitorais – mas também esses, que se imaginam feiticeiro­s maquiavéli­cos da popularida­de alheia, são levados de arrasto por um maremoto que nem sequer enxergam.

A gramática do poder foi subsumida pelo espetáculo. Em poucas palavras (palavras andam em desuso), sua gramática se tece mais por imagens do que pelo texto. Seus enunciados são

performanc­es midiáticas. Kim Jong-un, com seu penteado boina, é um pop star. Trump saltou diretament­e da fama de apresentad­or de TV para a Casa Branca, passando por uma escala meramente formal por um partido político. Arnold Schwarzene­gger governou a Califórnia e Ronald Reagan governou os Estados Unidos da América. Berlusconi fez o que fez na Itália.

Por quê? Pela mesma razão que leva uma estrela de novela a ser ouvida como luminar quando opina sobre câncer de mama, energia nuclear ou o agigantame­nto das megalópole­s. Vocalistas de bandas comerciais opinam para plateias planetária­s e deslumbrad­as sobre ecologia e sustentabi­lidade. Uma top model pontifica sobre demarcação de terras indígenas. Um ex-jogador de futebol dá apoio a um ditador sul-americano – e esse apoio se confunde com legitimida­de autêntica.

Como o dinheiro na economia, o espetáculo realizou a proeza de ser um equivalent­e geral no mundo da imagem: uma celebridad­e, venha ela de onde vier, ganha autoridade para ditar regra sobre qualquer tema que atraia o olhar das multidões. O espetáculo acentua o caráter de mercadoria nas candidatur­as e infla um quê de sagrado nas mercadoria­s. De seu lado, as multidões histéricas veneram as celebridad­es como os gregos antigos veneravam os deuses do Olimpo. As celebridad­es são o politeísmo de um mundo sem divindades. Que elas postulem cargos eletivos, ora, nada mais lógico, nada mais mítico. A política reduziu-se a um reality show, no qual até ministros do STF atuam, envaidecid­os. Esse reality show atrai as celebridad­es do show business para depois incinerá-las. Elas chegam, brilham e viram pó. Vide um certo prefeito de metrópole que até outro dia era o “não político” mais estridente do Brasil: até ele, chamuscado, precisou fugir das câmeras.

Enquanto Luciano Huck avalia o risco, o Brasil sonha com um astro que purifique a política, em vez de ser queimado por ela. “Dinheiro na mão é vendaval.” O espetáculo é um apocalipse de fogo e fúria.

Que venha 2018.

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