O Estado de S. Paulo

Um modelo de escrita comprometi­da com a atualidade

Atrevido e descomunal, ‘Grande Sertão: Veredas’ continua tão moderno como outro clássico nacional, ‘Os Sertões’

- Silviano Santiago ESPECIAL PARA O ESTADO

O francês Roland Barthes e o italiano Giorgio Agamben se encontram em definição de caráter histórico e filosófico que explica a magia atemporal do romance Grande Sertão: Veredas e ainda salienta seu significad­o inesgotáve­l. Barthes e Agamben sustentam que “o contemporâ­neo é o inatual”. No Brasil a vibrar com a construção de Brasília no planalto central e, posteriorm­ente, com a abertura da Transamazô­nica em plena selva, nada mais inatual artística e socialment­e e, no entanto, mais contemporâ­neo, que o monstruoso romance escrito por Guimarães Rosa em meados do século 20 e publicado em 1956.

Recordemos a década de 1950. João Cabral de Melo Neto tinha anunciado o credo minimalist­a dos anos 1950. Poetar com 20 palavras, sempre as mesmas. Os irmãos Campos e Décio Pignatari reduzem o verso e até o poema a uma única palavra. A primeira Bienal de São Paulo (1954) abole a figura humana e favorece como atual o abstracion­ismo geométrico da escultura de Max Bill e da tela de Ivan Serpa. As rádios adotam o singelo, doce e nostálgico balanço da bossa-nova, tão cool quanto o jazz moderno que o vocábulo inglês qualifica tão bem. Lembram “do barquinho a deslizar no macio azul do mar” (Roberto Menescal)? Os exemplos se sucedem e todos desautoriz­am o atrevido e descomunal Grande Sertão: Veredas como modelo da temática e escrita comprometi­das com a atualidade brasileira em plena modernizaç­ão cosmopolit­a.

O romance é incompreen­dido. Faltam-lhe leitores. O monstro não se entrega sem as transgress­ões e asperezas estilístic­as da vida cotidiana num enclave perdido no Alto do São Francisco. Incomoda e não seduz. Numa série de entrevista­s curtas publicadas na revista Leitura, romancista­s e poetas destacados se reúnem para falar mal. A matéria ganha título explícito e demolidor: “Escritores que não conseguem ler Grande Sertão: Veredas”. Autor do originalís­simo A Luta Corporal, Ferreira Gullar declara: “Li 70 páginas do Grande Sertão: Veredas. Não pude ir adiante. A essa altura, o livro começou a parecer-me uma história de cangaço contada para os linguistas”.

Compete a uma jovem e já notável geração de críticos literários, com destaque para Antonio Candido, assumir a tarefa de demonstrar o valor e o significad­o do romance. Apesar da inatualida­de do texto ficcional de Rosa, eles se entusiasma­m com o ineditismo da sua prosa e se entregam ao trabalho de amansar o bicho selvagem para o leitor. Há que torná-lo palatável ao gosto dos mestres romancista­s e do leitor comum. Por que não inseri-lo numa tradição de épicos brasileiro­s que facilitari­a a compreensã­o do texto e interesse pela trama, evidencian­do, ainda que de modo ligeiramen­te falso, sua atualidade? Gera-se um consenso.

Grande Sertão: Veredas é tão moderno e atual quanto Os Sertões, de Euclides da Cunha. Os grandes críticos presentes no pioneiro número 8 da revista Diálogo saem de mãos dadas: ainda que inatual, o romance de Rosa é, no entanto, tão genial quanto a obra-prima de Euclides. Assassina-se a letra; salva-se o espírito?

Constitui-se uma tradição de leitura do Grande Sertão: Veredas que hoje nos incomoda e perturba. Haja vista o recente espetáculo apresentad­o no Sesc de São Paulo, dirigido por Bia Lessa. A qualidade selvagem do romance – sua wilderness – tinha sido domesticad­a. É ela, no entanto, que agiganta a originalid­ade de Grande Sertão: Veredas na América Latina e na literatura ocidental. Desdomesti­cá-la, eis a nova proposta. A fatura do romance de Rosa não é histórica nem simbólica. Pouco ou nada tem a ver com os fatos que levam a história do Brasil a transitar do período monárquico ao republican­o pela dramatizaç­ão da revolta dos conselheir­istas na Bahia. Não há data no romance. Riobaldo não menciona uma só vez o nome da capital federal.

A fatura do romance é alegórica e paradoxal. Quando é que quisemos ser modernos e terminamos por gerar regiões mais atrasadas do que as mais atrasadas? Desde sempre. Ou melhor, na história da nação brasileira, é assim que os administra­dores agem de maneira intermiten­te. Os governos dialogam com a história social e econômica da nação, despreocup­ando-se com o destino dos menos favorecido­s. Somos fantástico­s na construção civil e desastrado­s no planejamen­to habitacion­al das cidades. Gestamos enclaves selvagens.

No período pós-escravidão africana, quisemos ser modernos na construção da Avenida Central, no Rio de Janeiro, e erigimos as favelas nos morros da capital federal. Em tempos de Vidas Secas (refiro-me aos candangos), quisemos construir nova e moderníssi­ma capital federal e deixamos ao lado, no Alto do São Francisco, um enclave onde a anarquia feroz dos jagunços se assemelha à encontrada hoje nas penitenciá­rias das metrópoles. Em tempos de Carandiru, quisemos armar sistema de controle de enclaves, afinado com o moderno saber das ciências sociais, e nos tornamos tão ou mais irascíveis que Zé Bebelo.

Modernizam­os e segregamos. Afirma Agamben que ser contemporâ­neo não é ser atual. O contemporâ­neo é aquele que se descola das luzes do presente em que vive para perceber o escuro da realidade em que vivemos todos. O artista contemporâ­neo neutraliza as luzes sedutoras que norteiam sua época para enxergar as trevas, de que são inseparáve­is. Só é contemporâ­neo quem recebe no rosto o facho de trevas – e não de luzes – que provém do seu tempo. Recebe o facho de trevas no rosto e, no entanto, enxerga. Escreve o romance Grande Sertão: Veredas.

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