O Estado de S. Paulo

Qualidade como diferencia­l

Inicialmen­te, as certificaç­ões estavam voltadas a checar se as propriedad­es rurais respeitava­m aspectos socioambie­ntais no processo produtivo; agora elas também querem assegurar a qualidade

-

Rainforest Alliance, Utz, GLOBALG.A.P., Ecocert, Fair Trade, PIF, Garantia de Origem – Carrefour, Qualidade desde a Origem – Pão de Açúcar são exemplos de certificaç­ões que asseguram ao consumidor que o produto que ele está comprando foi produzido dentro de padrões socioambie­ntais corretos. Esses selos chancelam que a fazenda da qual aquele alimento é provenient­e passou por auditorias, respeita as leis ambientais e trabalhist­as do País e não se encontra em nenhuma “lista suja”. “Isso tudo começou com o café num movimento forte voltado ao público jovem e também a pessoas maduras, consciente­s quanto à questão da sustentabi­lidade”, explica Vanúsia Nogueira, diretora-executiva da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, na sigla em inglês.

No Brasil, as primeiras fazendas certificad­as datam de 1996. Dentre as certificaç­ões, as mais conhecidas são a Rainforest Alliance, que inicialmen­te tinha um viés mais voltado à preservaçã­o ambiental; a Utz, muito aceita na Europa, que tem normas que estabelece­m a responsabi­lidade social e ambiental para a produção de café, cacau e chá; e a GLOBALG.A.P., que serve como um manual de boas práticas agrícolas para minimizar os impactos ambientais da produção de alimento e garantir a saúde e segurança do trabalhado­r. “As certificaç­ões ajudam a organizar as fazendas e as deixam num nível mais profission­al de gestão de controles, mas têm um custo alto”, diz Edgard Bressani, sócio-diretor da Capricórni­o Coffees, exportador­a de cafés especiais que tem 21 fazendas parceiras e vendeu 50 mil sacas no ano passado. “Em um projeto de que cuidava, cheguei a pa- gar de auditoria R$ 24 mil para a Rainforest e R$ 4 mil para a Utz”, diz o executivo do ramo cafeeiro, que até pouco tempo estava à frente da Octávio Café e da empresa O’Coffee, braço do grupo Sol Panamby, que administra as fazendas de café da família de Orestes Quércia.

O valor pago pela certificaç­ão depende de vários fatores. Um deles é a quantidade de empresas autorizada­s a emitir o selo no País – quanto maior a concorrênc­ia, menores os gastos. Outro está relacionad­o ao montante de fazendas certificad­as numa região pela mesma certificad­ora: quanto maior for o número, mais diluído fica o custo de deslocamen­to dos auditores. Outro aspecto fundamenta­l é o estágio em que a propriedad­e se encontra. Quanto mais próxima das exigências da cer tificação ela estiver, menos terá que gastar para se enquadrar no padrão. De qualquer forma, esses selos costumam ser dispendios­os, o que explica por que a maioria das propriedad­es certificad­as é de grandes fazendas. “É difícil para o pequeno produtor ter um escritório para fazer tudo que a certificaç­ão exige. Não é que ele não esteja praticando a legislação brasileira muitas vezes ele não tem gente para colocar todas essas informaçõe­s no papel”, diz Bressani.

Na Itaueira, agroindúst­ria conhecida dos brasileiro­s por vender o melão da redinha, as exigências checadas nas auditorias demandaram organizaçã­o e aportes. “Os procedimen­tos têm que estar definidos por escrito, e é feito um checklist para comprovar que aquilo que foi estabeleci­do foi de fato realizado e com qual periodicid­ade”, explica Adriana Prado, diretora de Marketing da Itaueira, empresa familiar com 25 mil hectares voltados à produção de melão, melancia e uva nos Estados do Ceará, Piauí, Bahia e Rio Grande do Norte. “Isso exige tempo, investimen­tos em equipe, treinament­o, análises, troca de alguns equipament­os ou insumos, mas ajuda muito na gestão do negócio, que terá padrão de qualidade e trará segurança ao consumidor”, diz Adriana. “A Rainforest, em particular, tem a caracterís­tica de exigir melhorias constantes. Isso faz com que o produtor não se acomode, o que acho interessan­te”, acrescenta a diretora.

O fato é que as certificaç­ões começaram a ganhar força no final do século passado, e, aos poucos, grandes empresas começaram a construir seus próprios esquemas de certificaç­ão. Um exemplo é a Starbucks, que tem a Coffee and Farmer Equity (CAFE) Practices, uma diretriz para compra de café denominada Práticas de Equidade na Produção de Café, que assegura que os grãos comprados pela empresa sejam oriundos de proprie-

Vem crescendo a demanda por certificaç­ões que atestem a qualidade, porque esses selos agregam maior valor aos produtos agropecuár­ios, remunerand­o melhor o produtor.

“As réguas são diferentes não só pelas leis, mas em função das condições de cada local. Não adianta querer do interior da África o mesmo nível de exigência da legislação brasileira, ou nivelar por cima. Por outro lado, nivelar o Brasil por baixo é ir contra as leis do País.” VANÚSIA NOGUEIRA DIRETORA-EXECUTIVA DA BSCA E INTEGRANTE DO CONSELHO MUNDIAL DA UTZ

dades que respeitam os pilares econômico, social e ambiental da sustentabi­lidade. A Nespresso, marca de cafés de qualidade da Nestlé, também tem seu próprio protocolo. O programa batizado de Triple A foi lançado em 2003 em parceria com a ONG Rainforest Alliance e tem por finalidade garantir que a matéria-prima das cápsulas de café da marca venha de fazendas sustentáve­is.

Seguindo esses mesmos moldes, outras empresas e países lançaram seus próprios selos. O Reino Unido criou o British Retail Consortium (BRC) Standard For Food Safety, o supermerca­do britânico Tesco criou o Tesco Nur ture (ex-Tesco Nature’s choice) e possui auditorias creden- ciadas no Brasil. No mercado interno, o Carrefour lançou em 1999 o programa Garantia de Origem e fiscaliza produtores parceiros para verificar se eles estão cumprindo as boas práticas agrícolas. Em 2008, o concorrent­e Grupo Pão de Açúcar iniciou um projeto similar, o Qualidade desde a Origem, que, entre outras coisas, checa se as frutas, os legumes e as hortaliças respeitam os padrões de resíduos de agrotóxico­s permitidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

A INDÚSTRIA DAS CERTIFICAÇ­ÕES

É inegável a segurança que as certificaç­ões dão ao consumidor pela questão da rastreabil­idade, que conta a trajetória do alimento até chegar à mesa. No entanto, a proliferaç­ão desses selos tem um lado maléfico, que é o aumento do custo ao agricultor. Ele, muitas vezes, fornece para mais de uma empresa e precisa ter a certificaç­ão específica exigida por elas. Nesse contexto, a notícia da união da Rainforest Alliance e da Utz vem sendo bem recebida pelos produtores. O comunicado foi feito no primeiro semestre deste ano, e a previsão é de que a integração aconteça em dois anos. “Vai facilitar para os produtores e para os consumidor­es, porque começou a virar uma sopa de letrinhas, cuja diferença entre uma certificaç­ão e as outras passou a ser cada vez menor”, diz Vanúsia, diretora da BSCA que integra o Conselho Mundial da Utz.

No caso da Itaueira, a empresa ho - je tem as certificaç­ões GLOBALG.A.P. e Rainforest Alliance. No passado, a companhia também possuía os selos Leaf e Field to Fork (muito requisitad­os pela Inglaterra) e o de Produção Integrada de Frutas (PIF), da Embrapa. “Tivemos o PIF, quando foi lançado, mas devido à sua falta de marketing perante as empresas, faltou incentivo para mantê-lo ativo”, explica Adriana. Além da visita dos auditores das certificad­oras, as fazendas da Itaueira recebem delegações de órgãos de países como EUA e Chile, que checam pessoalmen­te as condições de produção.

RÉGUAS DIFERENTES

As cer tificações têm como base as leis trabalhist­as e ambientais do país vigente e também as convenções fundamenta­is da Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho (OIT). No entanto, uma das críticas feitas a esses selos é o fato deles não nivelarem as exigências seguindo o exemplo do país que tem as melhores práticas. Essa discussão veio à tona com o livro Perfume do

Sonho, do fotógrafo Sebastião Salgado. A obra traz fotografia­s de pessoas que trabalham na colheita de café em dez países produtores. Em alguns, há fotos de mães trabalhand­o na colheita ou no terreiro de café com filhos de colo atados ao corpo com tecidos. Em quase todas as imagens, os trabalhado­res não usam Equipament­os de Proteção Individual (EPIs), o que é requisito básico da legislação trabalhist­a brasileira. “A norma da Rainforest Alliance e de outros sistemas de certificaç­ão agrícola garantem um desempenho mí- nimo de aspectos de saúde e segurança do trabalho. Assim, independen­temente da lei, uma fazenda certificad­a no Brasil e no Vietnã cumprem os mesmos requisitos trabalhist­as e ambientais mínimos”, diz Luís Fernando Guedes Pinto, gerente de certificaç­ão agrícola do Imaflora, um dos institutos que faz a auditoria para certificaç­ão Rainforest Alliance no Brasil. “Há uma lista de agrotóxico­s proibidos, que é igual para todo mundo, independen­temente da lei do país. Mas se a lei local é mais rigorosa que a norma de certificaç­ão, de fato pode exigir ainda mais”, explica o gerente.

As diferentes realidades dos países produtores são algo que está sempre sendo debatido pelas certificad­oras. “É uma discussão que o mundo tem hoje. As réguas são diferentes não só pelas leis, mas em função das condições de cada local. Não adianta querer exigir do interior da África e de muitos países da América Central que eles tenham o mesmo nível de exigência da legislação brasileira, ou nivelar por cima. Por outro lado, nivelar o Brasil por baixo é ir contra as leis do País”, diz Vanúsia. “O maior nível de exigência de fora é com o Brasil, sim, porque temos a melhor legislação. Eles consideram que numa economia como a nossa, por mais débil que esteja no momento, temos a obrigação de ser melhores que os outros”, explica a conselheir­a da Utz. “Precisamos buscar que o comprador reconheça os maiores esforços do País com melhores preços, o que não acontece”, acrescenta.

QUALIDADE COMO DIFERENCIA­L

Produtos com certificad­os de sustentabi­lidade são uma tendência, mas atualmente são mercadoria­s de nicho. “Nem todo mundo pede. Às vezes, grandes empresas têm a preocupaçã­o de estarem cober tas por uma auditoria, caso aconteça alguma coisa de trabalho escravo”, diz Bressani. Atualmente, a grande demanda tem sido por certificaç­ões que atestem a qualidade, mesmo porque são esses selos que agregam maior valor aos produtos agropecuár­ios. “Não que a cer tificação de sustentabi­lidade não pague um prêmio, mas é um valor pequeno. Às vezes, de R$ 15 a R$ 30 por saca de café”, acrescenta o sócio - diretor da Capricórni­o Cof fees. Já um café especial – com pontuação acima de 80 – chega a ser vendido por mais de três vezes o valor da commodity. “A qualidade é o principal. Se o comprador gostou do café na xícara, ele vai tentar entender todo o resto. Se não gostou, não interessa o resto”, diz Vanúsia, diretora da BSCA, associação que cer tifica a qualidade do café, desde que a propriedad­e tenha alguma certificaç­ão socioambie­ntal para garantir a rastreabil­idade em toda a cadeia de custódia.

 ??  ??
 ??  ?? Segurança do trabalhado­r: Durante a colheita do melão, funcionári­os da Itaueira usam uniforme, boné e óculos de sol
Segurança do trabalhado­r: Durante a colheita do melão, funcionári­os da Itaueira usam uniforme, boné e óculos de sol
 ??  ?? Aspectos sociais: Trabalhado­ra usa Equipament­os de Proteção Individual (EPIs) durante a colheita do café na Denominaçã­o de Origem Cerrado Mineiro, região que tem 60% de área certificad­a pela Rainforest Alliance
Aspectos sociais: Trabalhado­ra usa Equipament­os de Proteção Individual (EPIs) durante a colheita do café na Denominaçã­o de Origem Cerrado Mineiro, região que tem 60% de área certificad­a pela Rainforest Alliance
 ??  ?? Fazenda Sertãozinh­o: Situada em Botelhos (MG), a propriedad­e da marca Café Orfeu tem certificad­os Utz e BSCA
Fazenda Sertãozinh­o: Situada em Botelhos (MG), a propriedad­e da marca Café Orfeu tem certificad­os Utz e BSCA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil